domingo, 29 de abril de 2018

Um estudo dos conteúdos histórico-políticos da Scienza Nuova de 1744 de Giambattista Vico (I parte)



Giambattista Vico em sua obra Scienza Nuova de 1744, ao escrever sobre a gênese das nações deixa transparecer os conteúdos quer históricos, quer políticos que estão contidos em sua obra. Seu método constitui-se de uma análise tanto filológica quanto filosófica, tal método, conforme ele argumenta encontra-se embasado nos conceitos de ciência elaborados por Aristóteles e Francis Bacon. O primeiro por que afirmou que os objetos das ciências devem ser as coisas universais e eternas; o segundo, por seu método filosófico que parte das coisas naturais e transporta-as para “as coisas humanas civis”, conforme ele propõe na sua obra Cogitata et visa de interpretatione naturae, sive de inventione rerum et operum de 1609 [1].
O problema na elaboração deste trabalho deveu-se, sobretudo não à carência de conteúdos relacionados aos temas propostos, mas ao contrário ao excesso. Tive muita dificuldade em separar ambos os objetos da pesquisa, bem como os argumentos mais importantes e interessantes com os quais o autor expõe suas ideias. Vico à medida que descreve as origens das organizações políticas descreve História, de semelhante modo quando descreve as fábulas mitológicas e os fatos históricos descreve a Política.
Logo no início, na Ideia da Obra, o autor descreve pelo mito de Hércules, as figuras dos primeiros heróis desbravadores. Aqueles heróis que queimaram as florestas e estabeleceram as primeiras comunidades políticas. Por tal motivo a figura de Hércules é descrita ou denominada como um “caráter dos heróis políticos”, conforme vemos nesta passagem:

Na faixa do zodíaco que cinge o globo terrestre, mais do que os outros, comparecem em majestade (...) apenas dois signos do Leão e da Virgem, para significar que esta Ciência, nos seus princípios, contempla primeiramente Hércules (...) que se comprova ter sido o carácter dos heróis políticos que devem ter vindo antes dos heróis das guerras, pegou fogo e transformou em cultivado [2].

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              Ideia da Obra. Frontispício da Scienza Nuova


A contagem dos tempos entre os gregos se inicia com o cultivo dos campos. A figura da “Virgem” coroada de espigas simbolicamente significa que a história grega começa na “Idade do Ouro” narrada pelos poetas, e tal ouro em verdade era o trigo, que de acordo com Vico, teria sido “o primeiro ouro do mundo”. De modo semelhante, a contagem dos tempos entre os povos do Lácio esteve ligada à contagem das messes, ou seja, das colheitas. Tais povos denominaram esta primeira idade como sendo a “Idade de Saturno”. O Saturno dos latinos era figura idêntica a Cronos*, divindade grega associada ao tempo. A ciência da Cronologia relacionava-se “à doutrina dos tempos” [3].
Vico ao descrever seu método de estudo, que tem por base a análise filológico-filosófico amparando-se também na proposta de uma “nova arte crítica”, ele busca a verdade sobre os fundadores das nações e diz que decorreram cerca de mil anos até que surgisse m os escritores. O propósito de sua Ciência é fazer uma análise dos costumes, dos fatos, da linguagem e tudo o mais que esteja relacionado ao fazer humano. Seu estudo possibilita a descoberta de uma “história ideal eterna”, na qual transcorre a história de todas as nações[4].
O estudo das fábulas do período heroico possibilita o conhecimento de uma cronologia da história poética dos deuses. Tais fábulas revelam tanto a história de seus heróis quanto de seus costumes e que estes foram comuns a todos os homens no seu estado de barbárie. Eis o motivo de o autor considerar as obras de Homero, a Ilíada e a Odisséia como sendo “dois grandes tesouros” que nos possibilitavam conhecer questões relativas quer aos costumes, quer ao direito natural dos povos na sua barbárie. Conforme vemos neste trecho:

Essa teogonia natural, ou seja, geração dos deuses, produzida naturalmente nas mentes dos homens primitivos, dá-nos uma cronologia refletida da história poética dos deuses. As fábulas heroicas foram histórias verdadeiras dos heróis e dos seus heroicos costumes, que se verifica terem florescido em todas as nações no tempo da sua barbárie; pelo que se comprova serem os dois poemas de Homero dois grandes tesouros para a descoberta do direito natural das gentes gregas ainda bárbaras [5].

O estilo homérico foi mantido por Heródoto, tido como o pai da História. Em sua obra é possível perceber o grande uso das fábulas, e tal uso permaneceu durante certo tempo entre os historiadores que adviriam, utilizando expressões que meneavam entre estilo poético e o vulgar. Será com Tucídides que a História ganha certo rigor quanto à veracidade dos fatos narrados, conforme vemos nesta passagem:

(...) Heródoto, chamado o pai da história grega, e cujos livros estão repletos, na sua maior parte, de fábulas, e o estilo retém muitíssimo do homérico; em cuja propriedade se conservaram todos os historiadores que depois vieram, que usam uma expressão intermédia entre a poética e a vulgar. Mas Tucídides, o primeiro historiador rigoroso e sério da Grécia, no princípio dos seus relatos, declara que, até o tempo de seu pai (que era o tempo de Heródoto, que era velho quando tucídides era criança), os Gregos, de facto, nada sabiam, não apenas das antiquidades estrangeiras (...), mas das suas próprias [6];

Representado no Frontispício da Obra a figura do lítuo, ou seja, o bastão ou cajado, instrumento utilizado pelos primeiros adivinhos. É a partir da arte divinatória que começam a descobrir ou acreditar nas coisas divinas. Os hebreus pelo atributo da providência deles acreditavam ser Deus uma “Mente infinita” e que observa todos os tempos a partir de um ponto da eternidade; quando Deus atuava, ou seja, dizia o que havia de porvir, Ele o fazia por meio de anjos, porque eles são mente, ou por meio dos profetas que advertiam o povo. Os gentios tinham uma arte divinatória de procurar na própria natureza. Ora tal natureza dizia-se encontrar repleta de deuses. Tais deuses deixariam signos, e só os adivinhos reconheciam estes signos. Nestes os deuses nos aconselhavam quais decisões tomar, principalmente quando era de interesse comum[7]. O lítuo, segundo Vico é um símbolo de que a partir da arte divinatória tem início a história universal gentílica, que por meio de suas provas “físicas e filológicas” demonstram que a história universal dos gentios tem início com o “dilúvio universal”. De acordo com esta passagem:


Sobre o altar, do lado direito, o primeiro a aparecer é um lítuo, ou seja, a vara com a qual os augures tomavam os augúrios e observavam os auspícios; o qual pretende dar a entender a adivinhação, a partir da qual o começaram as primeiras coisas divinas para todos os gentios (...) foi dado universalmente por todo o gênero humano à natureza de deus o nome de <>, a partir de uma mesma idéia, à qual os latinos chamaram <>, <> (...) Portanto, de uma só vez, com esse dito lítuo, se assinala o princípio da história universal gentílica que, com provas físicas e filológicas, se demonstra ter tido o seu começo no dilúvio universal [8].


A figura da urna cinerária no frontispício da obra demonstra a organização política dos primeiros pais da humanidade. Ela representa, conforme o autor, a divisão dos campos e a distinção das cidades e dos povos. Ora os gentios, após um período pós-diluviano vivendo como animais, vão aos poucos se estabelecendo com algumas mulheres e “abaladas e despertas” essas gentes criam e acreditam que uma divindade os observa. Temerosos com a violência das tempestades, que acreditam ser a manifestação de tal divindade, estas gentes iniciam um refreamento dos instintos e cuidam de tornar-se piedosos. A crença de uma divindade faculta-lhes o estabelecimento de dois outros princípios de humanidade: os casamentos e os sepultamentos. Com o casamento surgem as famílias e com os sepultamentos a posse do território que por longo tempo haviam ocupado, pois que nestes territórios estavam as tumbas dos seus antepassados delimitando assim os costumes e os territórios de cada povo distintamente. Conforme vemos neste trecho:


Essa urna assinala, além disso, a origem, entre os mesmos gentios, da divisão dos campos, na qual se devem procurar encontrar as origens da distinção das cidades e dos povos e, por fim, das nações (...) e, assim dispersas, para procurar pasto e água e, por tudo isto, ao fim de longo tempo, tendo chegado a um estado de animalidade, em certas ocasiões ordenadas pela providência divina (que por esta Ciência se meditam e se descobrem), abaladas e despertas por um terrível pavor de uma divindade do Céu e de Júpiter por elas próprias inventadas e crida, finalmente, uns tantos detiveram-se e esconderam-se em certos lugares; onde, estabelecidos com certas mulheres (...) celebraram os matrimônios e fizeram filhos certos, e assim fundaram as famílias [9].


Com o estabelecimento dessas famílias junto às sepulturas dos seus pais confirmaram existir entre eles os fundadores das primeiras comunidades e entre eles surgiu a divisão dos campos. Esses primeiros pais eram denominados de “gigantes”. O que de acordo com Vico, tal termo em grego significa <>, o mesmo também significaria “descendentes dos sepultados”. Estes primeiros pais consideravam-se “nobres” porque pensavam com justiça (como sendo justo) o modo como eles haviam sido gerados, ou seja, gerados humanamente sob o temor de uma divindade [10].
Os primeiros que foram gerados dentro dos casamentos certos, ou seja, que foram humanamente gerados, foram denominados “geração humana” e das diversas famílias que desta geração ramificaram-se e desses descendentes vieram a se formar o que o autor denomina de “as primeiras gentes”. È a partir destas primeiras gentes têm início o que Vico chama de “doutrina do direito natural das gentes”. É com razões tanto físicas quanto morais, que vão além das histórias, que se comprova que estes primeiros pais eram, tanto em força, quanto em estatura gigantes [11] no sentido atual do termo.
A história dos povos antigos pode ser desvelada a partir da história dos povos romanos e mais ainda, dos povos da Grécia. Quanto às denominações dos lugares e regiões do mundo, todos em sua grande maioria receberam seus nomes, a partir de lugares e regiões que a princípio estavam na própria Grécia. Só depois que os gregos partem pelo mundo, eles denominam os novos lugares de acordo com a semelhança com sua terra de origem. Estas descobertas são tidas como “os outros princípios da geografia”, que juntamente com a cronologia são os “olhos da História”. Estas duas ciências, conforme o autor são necessários para a leitura da “história ideal eterna”. Conforme esta passagem:


E, porque se comprova terem sido estes altares os primeiros abrigos do mundo (que Tito Lívio geralmente define <>, como nos é narrado ter Rómulo fundado Roma dentro do abrigo aberto no bosque), (...) A esta descoberta menor junta-se esta maior: que, entre os Gregos (...), a primeira Trácia ou Cítia (ou seja, o primeiro Setentrião), a primeira Ásia e a primeira Índia (ou seja, o primeiro oriente), a primeira Mauritânia ou Líbia ( ou seja, o primeiro Meio-Dia) e a primeira Europa ou primeira Hespéria (ou seja, o primeiro Ocidente) e, com estas, o primeiro Oceano, todas nasceram dentro dessa Grécia; e que depois, os gregos, que partiram pelo mundo, pela semelhança dos lugares deram estes referidos nomes às quatro partes do mundo e ao oceano que o cinge [12];



Segundo Vico, os primeiros “ímpios-vagabundos-débeis” procuravam refúgio nestas primeiras cidades, para lá acorriam fugindo da perseguição dos gigantes mais furiosos e selvagens. Os gigantes já estabelecidos delimitavam seus territórios e acolhiam os mais fracos e subjugava ou matava aqueles ditos violentos e cruéis. Os acolhidos eram encarregados de produzir às suas expensas o próprio sustento, bem como o de seus salvadores. Estes acolhidos tornavam-se escravos que após algum tempo foram também capturados nas guerras. Estas a princípio originaram-se pela “defesa própria”, pois conforme o autor, esta é a legítima virtude da fortaleza [13].
Esta análise proporciona a descoberta de um desenho da “planta eterna das repúblicas”. Nesta planta pode se perceber que os Estados mesmo que conquistados por meio da força e da fraude precisam se estabelecer para que durem. Ao contrário, aqueles Estados conquistados por meio de ações virtuosas tendem após certo tempo a se degenerarem também pela força e pela fraude. Esta planta das repúblicas encontra-se embasada em dois “princípios eternos” do mundo das nações, ou seja, a mente e o corpo dos indivíduos, que pertencem a este mundo das nações. Aqui é impossível não notar a influência de Platão. Assim como se compõe o homem devem compor-se as nações, ou seja, que aqueles que usam a mente, que são os nobres comandem, e aqueles que usam o corpo, os plebeus e compõem a parte vil devem obedecer. Conforme concluímos com esta passagem:


E em todas estas origens se descobre desenhada a planta eterna das repúblicas, sobre a qual os Estados se bem que conquistados com violência e com fraude, se devem estabelecer para durarem; como pelo contrário, os conquistados com estas origens virtuosas, depois se arruínam com a fraude e com a força (...) Pelo que – sendo os homens compostos por estas duas partes, das quais uma é nobre e como tal, deveria comandar, e a outra vil, a qual deveria servir [14].


[1] VICO, Giambattista. Ciência Nova, p.119.
[2] Ibidem, pp. 4-5.
[3] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 5-6.
[4] Ibidem, pp. 8-9.
[5] Ibidem, p. 10.
[6] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 4.
[7] Ibidem, p. 9.
[8] Ibidem, pp. 11-12.
[9] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 14.
[10] Ibidem, pp. 14-15.
[11] Ibidem, p. 15.
[12] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 19-20.
[13] Ibidem, p. 20.
[14] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 21.

Imagem: https://felipepimenta.com/2013/12/12/resenha-ciencia-nova-de-giambattista-vico/em 29/04/2018.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

Homero: política, história, filologia e vida civil no Livro III Da descoberta do verdadeiro Homero na Scienza Nuova de 1744 de Giambattista Vico.


Homer: politics, history, philology, and civic life in Book III From the discovery of the true Homer in the Scienza Nuova of Giambattista Vico, 1744.




Resumo


No seu principal escrito, a Scienza Nuova de 1744, Giambattista Vico (1668-1744) subdividi-o em cinco livros, dentre tais, o terceiro intitulado Da descoberta do Verdadeiro Homero [Della discoverta del vero Omero], o autor discorre sobre a verdade em relação a esse poeta. Deste modo intentamos aqui nesta pesquisa apresentar os estudos de Vico em relação ao poeta, cujas obras, tanto Ilíada, quanto Odisséia são por Vico, consideradas como verdadeiros testemunhos, da política, da História, da Filologia e da vida civil daqueles primeiros povos da Grécia. A pesquisa segue a orientação de uma interpretação hermenêutica conforme o método do autor. Para uma melhor exposição da presente pesquisa, subdividimo-la em quatro tópicos cujos aspectos possibilitam uma melhor compreensão das ideias, deste modo, o primeiro aspecto abordado são os aspectos políticos; o segundo, os aspectos históricos; o terceiro, os aspectos filológicos; e por último, os aspectos da vida civil.



Palavras-chave: HOMERO. POLÍTICA. HISTÓRIA. FILOLOGIA. VIDA CIVIL.

New Science 
Ideia da Obra. Frontispício Scienza Nuova.
Obseve a figura de Homero recebendo o raio da Providência Divina após refletir na jóia no peito da Metafísica.







Na sua obra principal, a Scienza Nuova, Giambattista Vico (1668 – 1744) subdivide a obra em cinco livros, o terceiro deles intitulado Da Descoberta do Verdadeiro Homero [Della Discoverta del Vero Omero]. Neste livro o autor pretende um estudo sobre este poeta cujas obras ele considerava como verdadeiros testemunhos da vida dos primeiros povos da Grécia[1]. A figura de Homero ocupa relevante e destacado espaço no frontispício que está postado no início da Obra.
No desenho a figura de Homero recebe o raio que parte da Providência e reflete na jóia que adorna o peito da Metafísica. A explicação para isto se deve em razão da própria concepção de metafísica, que conforme Vico compreende “uma história das idéias humanas”. A partir disto, o autor diz ter “descido” à mentalidade rude daqueles primeiros homens que fundaram as nações gentílicas, e por suas origens ainda grosseiras, estes homens estavam quase que completamente mergulhados em seus sentidos e suas mentes eivadas de fantasia [2].
A disposição do Livro III encontra-se distribuída em tópicos que possibilitam uma fácil compreensão dos objetivos propostos pelo autor. Portanto, eis a disposição tópica dos conteúdos do livro. Duas seções: sendo a primeira relativa à busca de Homero; a segunda trata da descoberta do poeta. Na primeira seção onde será empreendida a busca deste Homero, o autor a divide em seis capítulos.
O primeiro trata de uma pretensa sabedoria secreta que alguns filósofos atribuíram a Homero. No segundo capítulo, o autor faz uma investigação sobre a verdadeira pátria de Homero. O terceiro investiga-se a verdadeira idade do poeta. O quarto capítulo, Vico expõe as causas de Homero ter sido insuperável na sua arte, isto se deve pelo fato de ter sido Homero o primeiro (ou mais notável) poeta a cantar os costumes daquelas gentes gregas. O quinto e o sexto capítulos tratam das provas quer filosóficas, quer filológicas que demonstram a verdade sobre o poeta.
A Segunda Seção será a exposição da descoberta de quem ou o que seria este Homero. Uma ligeira introdução e o autor subdivide esta seção em dois capítulos e um Apêndice. O primeiro capítulo conforme o próprio título explicita trata das inconveniências e inverossimilhanças do Homero em que se acreditou até agora se tornam conveniências e necessidades no Homero que será descoberto. O segundo capítulo demonstrará que os poemas criados por Homero são dois grandes testemunhos do Direito Natural dos povos da Grécia. Por último, o autor escreve um apêndice onde será refletida a história dos poetas dramáticos e líricos que até então os filósofos haviam descrito de forma demasiadamente incompreensível.
Aqui, no entanto, buscamos explicitar os aspectos políticos, históricos, filológicos e de vida civil. E para facilitar o entendimento cada um destes aspectos está disposto em tópicos onde serão trabalhados de modo unitário.
1. Aspectos Políticos
            Ao iniciarmos a pesquisa quanto aos aspectos políticos, verifica-se já no Primeiro Capítulo aquele intitulado Da sabedoria Secreta que atribuíram a Homero [Della Sapienza Riposta c'Hanno Oppinato d'Omero] existe uma passagem onde Vico diz que alguns autores acreditaram ter sido Homero o responsável pela organização da política dos primeiros povos da Grécia. Isto pelo fato de sua obra Ilíada conter como principal tema e personagens uma disputa entre Agamenon e Aquiles, conforme esta passagem:

Eis o Homero que, até agora, se acreditou ter sido o organizador da política, ou seja, da civilização grega, que começa, a partir desse facto, o fio com que tece toda a Ilíada, cujos principais personagens são um tal capitão e um herói, como nós demos a ver Aquiles, quando raciocinamos acerca do heroísmo dos primeiros povos![3]

            Na Odisséia percebem-se também aspectos relativos à política com os povos estrangeiros, pois lá existem relatos de determinados produtos e especiarias que eram provenientes do comércio com os fenícios. Estes comercializavam produtos originários de diversas nações da costa mediterrânica [4]. Vico diz que, Homero deve ter surgido em um período no qual o “direito heróico” estava em vias de desaparecimento. Estava em ascensão o período de “liberdade popular”, uma vez que, os heróis já contraíam matrimônios com as mulheres estrangeiras e os filhos de uniões ilícitas eram admitidos como regentes dos reinos. De acordo com esta passagem:

(...) Homero parece ter surgido nos em que na Grécia, já estava decadente o direito heróico e tinha começado a celebrar-se a liberdade popular, porque os heróis contraem matrimônios com estrangeiras e os bastardos acedem às sucessões dos reinos [5].

2. Aspectos Históricos
            No Capítulo Quinto, ainda na Primeira Seção onde o autor expõe, as Provas filosóficas para a descoberta do verdadeiro Homero [Pruove Flosofiche per la Discoverta del Vero Omero] são expostos alguns desses aspectos históricos. Dentre tais aspectos, o primeiro diz que, o homem possui certa propensão natural para conservar quer a “memória das ordens” [memorie degli ordini], quer das leis que tenham a propriedade de mantê-los unidos em Sociedade [6].
            Autores como Ludovico Castelvetro incorreu em erro ao acreditar que a História tenha surgido primeiro que a Poesia. Se os poetas surgiram anteriormente aos historiadores, é mais conveniente acreditar que a primeira história deve ter sido poética [7]. Isto em razão de as primeiras narrações e fábulas conterem um conteúdo verdadeiro[8]. O motivo de acreditarmos serem tais fábulas eivadas de falsidades deve-se às deturpações[9] que elas sofreram à medida que eram repassadas as outras gerações. Conforme o autor explicita nesta passagem:

Que as fábulas, na sua origem, foram narrações verdadeiras e severas (donde mutoς, a fábula, foi definida como <<vera narratio>>, como acima, por várias vezes, nós dissemos); as quais primeiro nasceram geralmente indecentes e, por isso, depois, se tornaram impróprias, portanto alteradas, seguidamente inverossímeis, mais adiante obscuras, daí escandalosas e, por fim, inacreditáveis; que são sete fontes das dificuldades das fábulas, as quais se podem encontrar ao de leve em todo o segundo livro [10].
           
Retornando ao Capítulo Terceiro também da Seção Primeira, intitulado: Da Idade de Homero [Dell'età d'Omero] podem ser descobertos os seguintes aspectos históricos: já se disputavam alguns jogos, como aqueles que são citados nos funerais de Pátroclo e que posteriormente também seriam realizados durante as Olimpíadas; algumas arte , como por exemplo: a fundição de baixos-relevos, já eram conhecidas, conforme Homero descreve  na fabricação do escudo de Aquiles [11].
As coisas esplêndidas que na Odisséia são narradas sobre os jardins de Alcínoo seriam testemunhos históricos de que quando ela foi escrita, os gregos já se deleitavam com o luxo e as riquezas [12]. O que seria também uma prova de que a Ilíada e a Odisséia teriam sido escritas em épocas mui distantes uma da outra. Algo que, conforme Vico fez com que Dionísio Longino chegasse ao equívoco de acreditar que a Ilíada tivesse sido escrita por Homero na sua juventude e a Odisséia, numa avançada maturidade, de acordo com a seguinte passagem: “Dionísio Longino, não podendo dissimular a grande diversidade dos estilos dos dois poemas, diz que Homero, sendo jovem, compôs a Ilíada, e depois, sendo velho a Odisséia (...)” [13].
A incorrência em tal erro, conforme Vico se deu em decorrência da não observância de dois pontos importantíssimos para aqueles que se dedicam ao estudo da História: o primeiro é o tempo em que o fato teria ocorrido; e o segundo, o lugar em que havia se passado tal fato [14].
3. Aspectos Filológicos
            De antemão faz-se necessário esclarecer-mos que para Giambattista Vico, os aspectos filológicos são bem abrangentes, e não se limitam apenas às questões relacionadas à linguagem, a gramática ou etimologia. Mas, conforme ele: “doutrina de todas as coisas que dependem do arbítrio humano, como são todas as histórias das línguas, dos costumes e dos fatos, tanto da paz como da guerra dos povos” [15].
            No Capítulo Segundo, Da pátria de Homero [Della patria d'Omero], ainda na Primeira Seção, Vico trata da disputa, que segundo ele, algumas cidades da Grécia travaram para decidir sobre qual delas seria a pátria de Homero. Tal acontecido se deu em razão destas tais cidades reconhecerem nos poemas dele, tanto na Ilíada, quanto na Odisséia determinadas palavras, frases e dialetos comuns a cada uma delas. Conforme está na seguinte passagem: “A contenda entre as cidades gregas pela honra de ter cada uma Homero como seu cidadão provém do fato de quase todas observavam nos dois poemas dele tantas palavras e frases como dialectos que em cada uma delas eram vulgares “[16].
Os mitos e fábulas que conforme dissemos anteriormente foram descritos de modo um tanto quanto indecentes por Homero deveu-se pelo seguinte motivo: tais fábulas tinham originariamente sentidos verdadeiros e até chegarem à época de Homero sofreram deturpações. Este fato explicaria uma outra verdade a respeito da figura de Homero. O poeta teria de estar situado numa “terceira idade dos poetas heróicos”. Na primeira idade, as fábulas teriam significados verossímeis; na segunda, os significados foram sendo alterados e corrompidos; na terceira e última que foi à de Homero, ele já as recebeu e transmitiu totalmente desfigurada dos seus primeiros significados, de acordo com esta passagem:

O que se demonstra com esta crítica metafísica: que as fábulas, as quais, quando do seu nascimento tinham surgido direitas e convenientes, chegaram a Homero tortas e indecentes; como se pode observar ao longo de toda a Sabedoria Poética aqui acima reflectida, pois todas foram primeiramente histórias verdadeiras que, pouco e pouco, se alteraram e se corromperam e, assim corrompidas, chegaram finalmente a Homero. Pelo que deve ser situado na terceira idade dos poetas heróicos: depois da primeira, que encontrou essas fábulas em uso como verdadeiras narrações, na primeira e própria significação da palavra mutoς, que é definida por esses mesmos gregos como <>; a segunda, daqueles que a alteraram e corromperam; a terceira, finamente, de Homero, que assim corrompidas as recebeu [17].

No Capítulo Quinto que versa sobre as provas filosóficas para a descoberta do verdadeiro Homero [Pruove Filosofiche per la Discoverta del Vero Omero], existe uma passagem que diz: a fala heróica se expressava mediante semelhanças, imagens e comparações. Isto em razão da escassez de gêneros e espécies, que são necessários para uma definição adequada das coisas[18]. Surgem em detrimento de uma necessidade natural dos povos [19].
No Capítulo Sexto, sobre as provas filológicas, Vico diz que, os povos bárbaros que se conservaram fechados em suas fronteiras sem nenhum contato com outras nações, a exemplo dos povos germânicos e indígenas americanos guardaram em versos toda a sua história. Outro testemunho forte é o que se encontra no Capítulo Segundo da Segunda Seção, que diz que os poemas de Homero devem ser considerados como testemunhos dos costumes antigos dos gregos. Semelhante consideração deve ser atribuída as leis das XII Tábuas, testemunhos dos costumes dos povos do Lácio [20].

4. Aspectos da Vida Civil
            No que diz respeito aos aspectos da vida civil, no Capítulo Primeiro, da Primeira Seção onde Vico trata de uma pretensa sabedoria secreta que alguns autores acreditavam ser Homero possuidor, e que ele (Vico) refuta, estão as seguintes considerações. Que Homero, em verdade, não era douto, mas detinha uma sabedoria vulgar. Tal sabedoria estava em conformidade com os costumes daqueles primeiros povos da Grécia. Os sentimentos do autor da Ilíada, de acordo com o que percebemos na leitura do poema, diz Vico, são totalmente pertinentes aos sentimentos dos povos gregos em seu estado de barbárie. Estes sentimentos são os propiciadores da matéria da qual os poetas extraem seus versos. Conforme o autor explicita nesta passagem:

Conceda-se-lhe também aquilo que seguramente lhe deve ser atribuído, ou seja, que Homero deve ter andado em conformidade com os sentimentos completamente vulgares e, por isso, com os costumes vulgares da Grécia, bárbara nos seus tempos, porque tais sentimentos e costumes vulgares fornecem aos poetas as matérias próprias [21].


Na Segunda Seção, Capítulo Primeiro onde o autor trata das inconveniências e inverossimilhanças a respeito de Homero que, conforme ele, tornar-se-íam conveniências e necessidades do Homero que ele descobre, existe uma passagem que diz o seguinte: Homero teria composto A Ilíada em um período em que a Grécia era jovem, e a Odisséia em uma época mais tardia, conforme já expomos acima. No primeiro poema, cujo ator principal é Aquiles, herói jovem e de ações movidas por fortes sentimentos, reflete como um espelho, os costumes e comportamentos civis daqueles primeiros gregos. No segundo poema, a figura de Ulisses serve justamente para demonstrar as características daqueles homens gregos cuja existência deu-se numa época posterior, e que já se comportavam de modo mais prudente e refletindo cautelosamente antes de agirem. Conforme podemos acompanhar na seguinte passagem:

Assim, Homero compôs a Ilíada quando a Grécia era jovem e, consequentemente, ardente de paixões sublimes, como o orgulho, a cólera, a vingança, paixões essas que não suportam dissimulação e ama a generosidade; pelo que admirou Aquiles, herói da força: mas, depois, compôs velho a Odisséia, quando a Grécia tinha arrefecido um tanto os ânimos com a reflexão, que é mãe da prudência; pelo que admirou Ulisses, herói da sabedoria [22].

O Homero que teria elaborado a Ilíada deve ter vivido em uma época que os gregos ainda mergulhados em costumes bárbaros se deleitavam com atitudes crudelíssimas, e tinham prazer com ações vis e atrozes. Já o Homero compositor da Odisséia viveu em um período em que os ânimos[23] já estavam arrefecidos, e compraziam-se com o luxo, e os costumes estavam um tanto quanto dissolutos. Conforme atestam aquelas passagens da Odisséia onde estão descritos o fausto dos jardins de Alcínoo, os prazeres nos palácios de Calipso e Circe e os passatempos com os quais se deleitavam os pretendentes de Penélope, esposa de Ulisses. Conclui-se aqui após a presente exposição que Giambattista Vico demonstra ter sido o poeta Homero não um personagem histórico, mas apenas um caractere poético dos grandes rapsodos da antiga Grécia.


[1] A relevância deste poeta vem devidamente esclarecida com as considerações de Humberto Guido: “A fonte primária da pesquisa social é Homero, mas, tal como afirmou Sócrates no Íon, não basta conhecer os versos de Homero, é preciso ser o intérprete do seu pensamento. Sua interpretação poética oferece ao pesquisador o relato histórico da barbárie primitiva e a formação dos primeiros organismos sociais” (GUIDO, Humberto Aparecido de Oliveira. A barbárie da reflexão e a decadência moral, editorial philosophia, UFU, 2002, p. 5.).
[2] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, [1744]. Trad. port. Jorge Vaz de Carvalho. Portugal: Edições da Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 7.
[3] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 601.
[4] Cf. VICO. Giambattista. Ciência Nova, pp. 608-612.
[5] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 611.
[6] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 619.
[7] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 619-620.
[8] Sobre tal problemática que envolvia conjecturas sobre a origem da poesia entre Vico e outros autores é convenientemente abordada por Expedito Passos: Para responder à questão acerca da origem da poesia, Vico parte de certa compreensão antropológica da natureza humana: primeiro os homens se ocupam “do necessário, em seguida da comodidade, finalmente do prazer”. Embora permaneça ainda o desacordo dos eruditos quanto à origem da poesia (nasceu por causa do útil ou do deleite?), há um consenso quando recusam o seu advento por meio de qualquer necessidade. Contra esta imprecisão, Vico destaca o nascimento da poesia “antes de todas as artes da comodidade e do prazer, que todas se devem à república”. Ademais, os homens, em virtude de sua própria natureza, “sentem primeiro as coisas que [lhes] tocam, em seguida os costumes, finalmente as coisas abstratas”. Tal como as crianças que percebem o particular “os mais engenhosos não sabem senão se expressar por semelhanças” (LIMA, José Expedito Passos. A estética entre saberes antigos e modernos na nuova scienza, de Giambattista Vico Tese de doutorado. PUC SP 2006, p. 237.).
[9] Veja também as considerações de Berlin: “Tais mito e seus modos de expressão, apesar de imperfeitos que possam parecer aos teólogos e filósofos de nossos tempos sofisticados (e àquele das épocas ‘clássicas’ anteriores) foram, em seus dias, apropriados e coerentes” (BERLIN, Isaiah. Vico e Herder [1976]. Trad. br. Juan Antônio Gili Sobrinho, Brasília, 1982, p. 101.).
[10] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 620.
[11] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 607.
[12] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 607.
[13] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 640, ver também a página 611.
[14] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 640.
[15] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 9.
[16] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 606.     
[17] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 615-616.
[18] Sobre tal questão, ver aqui o que afirma Burke sobre Vico: “Sendo ele mesmo um poeta, argumentava que tipos diferentes de poesia, como tipos diferentes de leis, eram apropriadas a sociedades diferentes e que os homens primitivos eram necessariamente poetas, porque tinham imaginações fortes, que compensavam a fraqueza de sua razão” (BURKE, P. Vico. [1985]. Trad. br. Roberto Leal Ferreira, São Paulo: UNESP, 1997, p. 15.).
[19] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 628.
[20] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 655.
[21] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 599.
[22] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 646.
[23] Sobre o ânimo são pertinentes as considerações de Bordogna: “O ânimo seria aquela parte da nossa natureza que nos põe em comum com as bestas, ou melhor, aos das origens, cujas mentes ainda não eram aguçadas e espiritualizadas mediante os raciocínios, mas se encontravam ainda todas presas aos sentidos, nas produções da fantasia e imersas nas paixões” (tradução nossa). [L’animo sarebbe quella parte della nostra natura che ci accomuna alle bestie o meglio ai <> delle origini, le cui menti non si erano ancora assottigliate e spiritualizzate mediante i ragionamenti, ma si trovavano ancora tutte prese nei sensi, nelle produzioni della fantasia ed immerse nelle passioni.]; (BORDOGNA, Alberto. Gli idoli del foro: Retórica e mito nel pensiero di Giambattista Vico, Aracne  editrice. Roma, 2007 p. 90.).



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