Ubiracy de Souza Braga*
“Cantar, para mim, é sacerdócio. O resto é o resto”. (Elis Regina)
Elis Regina Carvalho Costa criticou muitas vezes a ditadura militar brasileira, nos difíceis anos de chumbo (1964-1984), quando muitos músicos foram perseguidos e exilados. A crítica social tornava-se pública em meio às declarações ou nas canções que interpretava. Em entrevista, no ano de 1969, teria afirmado que o Brasil “era governado por gorilas”. Arquivos militares mostram a cantora dizendo que tal frase foi criada pela imprensa sensacionalista. A popularidade a manteve fora da prisão, mas fora obrigada pelas autoridades a cantar o Hino Nacional durante um espetáculo em um estádio, fato que despertou a ira da esquerda brasileira.
Sempre engajada politicamente, Elis Regina participou de uma série de movimentos de renovação política e cultural brasileira, com voz ativa da campanha pela Anistia de exilados brasileiros do qual Dilma Roussef fizera parte. Mas a expressão “os anos de chumbo”, guardadas as proporções artísticas e políticas, refere-se ao longa-metragem dirigido pela cineasta Margarethe von Trotta, “Die Bleierne Zeit” (1981), em que Julianne (Jutta Lampe) e Marianne (Barbara Sukowa), filhas de um pastor protestante, se afastam da austeridade religiosa de seus pais e tentam mudar a sociedade em que viviam. Cada uma escolhe uma maneira diferente: enquanto que Juliane é uma “jornalista engajada”, sua irmã faz parte de uma organização terrorista. Quando Marianne é presa pelas autoridades, Juliane se torna seu único vínculo ético-político com o mundo fora da prisão. Daí a analogia entre três mulheres: a) na arte cinematográfica, b) na vida social através da música engajada, c) na vida política como primeira mulher presidenta da República Federativa do Brasil.
O despertar de uma postura artística engajada, com excelente repercussão acompanharia toda a carreira, de Elis Regina sendo enfatizada por interpretações consagradas de “O bêbado e a equilibrista”, de autoria de João Bosco e Aldir Blanc, a que vibrava como o hino da Anistia. A canção coroou a volta de personalidades brasileiras do exílio, a partir de 1979. Um deles, citado na canção, era o irmão do Henfil, o Betinho, importante sociólogo na “luta pela vida”. Também merece destaque, o fato de Elis Regina ter se filiado ao PT - Partido dos Trabalhadores, em 1981, onde tanto Luiz Inácio Lula da Silva, como a atual presidenta Dilma Rousseff tornam-se: “winner” na dupla acepção da palavra: “vencedor” ou “sucesso”.
Ipso facto nas palavras de Evaristo de Moraes (1986:188), “teve a libertação do Ceará repercussão memorável em Paris. Patrocínio estava lá”. A 22 de março dirigiu ele a Victor Hugo uma carta, comunicando que dentro de três dias uma província brasileira, a do Ceará, graças aos esforços de associações abolicionistas, ia ser considerada liberta do cativeiro. Pedia a propósito, ao genial poeta, uma palavra de animação, um conselho, que servisse de encorajamento ao Imperador, no sentido da Abolição. Estando marcado para o dia 25 um banquete, Victor Hugo enviou a resposta com essa data. Ei-la:
“Une province du Brésil vient de declarer l` esclavage aboli./ C` est là une grande nouvelle!/L`esclavage c`est l`homme remplacé dans l`homme par la bête; ce qui peut rester d`intelligence humaine dans cette vie animale de l`homme, appartient au maitre, selon as volonté et son caprice./De là des circonstances horribles./Le Brésil a porté à l` esclavage un coup décisif. Le Brésil a un empereur; cet empereur est plus qu`un empereur, il est um homme./ Qu`il continue. Nous le félicitons et nous l`honorons. /Avant la fin du siècle, l` esclavage aura disparu de la terre./La liberté est la loi humaine./Nous constatons d`un mot la situation du progrès: la barbarie recule, la civilisation avance” (sic).
Em assim sendo, guardadas as proporções, de tempo e de “práticas de espaço” (cf. Certeau, 1974; 1975; 1980; 1994), como no exemplo do Rio de Janeiro, com a revolta dos marinheiros na Ilha das Cobras, na baía da Guanabara, como é descrito na letra da música composta por João Bosco e Aldir Blanc, intitulada: O Mestre-Sala dos Mares e interpretada na inesquecível voz de Elis Regina. Diz assim:
“Há muito tempo nas águas da Guanabara/O dragão do mar reapareceu/Na figura de um bravo feiticeiro/A quem a história não esqueceu/Conhecido como o navegante negro tinha a dignidade de um mestre-sala/E ao acenar pelo mar na alegria das regatas/Foi saudado no porto pelas mocinhas franciscanas/,jovens polacas e por batalhões de mulatas/Rubras cascatas/Jorravam das costas dos santos entre cantos e chibatas/Inundando o coração do pessoal do porão/ que a exemplo do feiticeiro gritava então: Glória aos piratas/As mulatas/As sereias/Glória a farofa/A cachaça/As baleias/Glória a todas as lutas inglórias que através de nossa história não esquecemos jamais/Salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais/Mas salve (bis)/Mas faz muito tempo”.
Outra questão importante se refere ao direito autoral dos músicos brasileiros, estudado por Mendonça (2003), polêmica que Elis Regina, primus inter pares encabeçou, participando de muitas reuniões em Brasília (DF). Além disso, fora presidente da Assim - Associação de Intérpretes e de Músicos. Causando grande comoção nacional, faleceu aos 36 anos de idade em 19 de janeiro de 1982, devido a “complicações decorrentes de uma overdose de cocaína, e bebida alcoólica”. O laudo médico foi elaborado por José Luiz Lourenço e Chibly Hadad, sendo o diretor do IML - Instituto Médico Legal, Harry Shibata, médico conhecido por seu envolvimento no caso do assassinato do jornalista Vladimir Herzog (cf. Perosa, 1979; Jordão, 1985).
Vlado Herzog na redação da BBC (britânica), onde trabalhou sobre produções para TV.
Jornalista, professor da USP - Universidade de São Paulo e teatrólogo, Vlado Herzog nasceu em 1937, na cidade de Osijsk, Iugoslávia. Filho de Zigmund Herzog e Zora Herzog imigrou com os pais para o Brasil em 1942. A família saiu da Europa fugindo do nazismo. Vlado foi criado em São Paulo e se naturalizou brasileiro. Fez Filosofia na USP e tornou-se jornalista do jornal O Estado de S. Paulo em 1959. Nesta época, Vlado achava que o nome soava exótico nos trópicos e resolveu passar a assinar Vladimir. No início da década de 1960, casou-se com Clarice. Com o golpe político-militar de 1964, o casal resolveu passar uma temporada na Inglaterra e Vladimir conseguiu trabalho na BBC de Londres. Lá, tiveram dois filhos, Ivo e André.
Em 1968, a família voltou ao Brasil. Vlado trabalhou um ano em publicidade, depois na editoria de cultura da revista Visão. Em 1975, foi escolhido pelo Secretário de Cultura de São Paulo, José Mindlin, para dirigir o jornalismo da TV Cultura. Na noite do dia 24 de outubro de 1975, o jornalista apresentou-se na sede do DOI-Codi -Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna, em São Paulo, para prestar esclarecimentos sobre suas ligações com o PCB - Partido Comunista Brasileiro. No dia seguinte, foi morto aos 38 anos. Segundo a versão oficial da época, ele “teria se enforcado com o cinto do macacão de presidiário”. Porém, de acordo com os testemunhos de Jorge Benigno Jathay Duque Estrada e Rodolfo Konder, jornalistas presos na mesma época no DOI/Codi, Vladimir foi assassinado sob torturas.
Analogamente ocorrera em 1969 com Dilma Vana Rousseff que já vivendo na clandestinidade, usa vários codinomes para não ser encontrada pelas forças de repressão aos opositores do regime político. No mesmo ano, Comando de Libertação Nacional (Colina) e a VPR - Vanguarda Popular Revolucionária se unem, formando a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares), em homenagem ao “Quilombo dos Palmares” (cf. Carneiro, 1958; Albuquerque, 1978). Na visão de Élio Gaspari, “a organização utilizava táticas de guerrilha urbana e de terrorismo, tendo como objetivo a derrubada da ditadura militar e a instalação de um regime socialista”, segundos os moldes marxista-leninistas no Brasil. De sua fusão com o Comando de Libertação Nacional (Colina), deu origem à VAR-Palmares em homenagem ao Quilombo dos Palmares (cf. Carneiro, 1958; Albuquerque, 1978).
A VPR se recompôs posteriormente, deixando a VAR-Palmares e, em 1970, passando a organizar um campo de treinamento de guerrilheiros no vale do Ribeira. Em julho, a VAR-Palmares rouba o “cofre do Adhemar”, que teria pertencido ao ex-governador de São Paulo Adhemar de Barros. A ação ocorreu no Rio de Janeiro e teria rendido à guerrilha US$ 2,4 milhões. Dilma Rousseff nega ter participado dessa operação, mas há quem afirme “que ela teria, pelo menos, ajudado a planejar o assalto”. Em setembro de 1969, a VAR-Palmares sofre um racha. Volta a existir a VPR. Dilma Rousseff “escolhe permanecer na facção política VAR-Palmares - e ainda teria organizado três ações de roubo de armas no Rio de Janeiro, sempre em unidades do Exército”. Presa em 16 de janeiro de 1970, em São Paulo, o promotor militar responsável pela acusação a qualificou de “papisa da subversão”. Fica detida na Oban (Operação Bandeirantes), onde é torturada. Depois, é enviada ao Dops. Condenada em 3 Estados, em 1973 já está livre, depois de ter conseguido redução de pena no STM (Superior Tribunal Militar). Muda-se, então, para Porto Alegre, onde cursa a Faculdade de Ciências Econômicas, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Mutatis mutandis, Elis Regina fora casada com o músico Ronaldo Bôscoli (1928-1994), e de Pedro Camargo Mariano e teve Maria Rita (nascida 1977), filhos de seu segundo marido, com o pianista César Camargo Mariano (1943-). O estilo musical interpretado ao longo da carreira percorria assim o “fino da bossa nova”, firmando-se como uma das maiores referências vocais deste gênero. Aos poucos, o estilo MPB, pautado por um hibridismo ainda mais urbano e “popularesco” que a bossa nova, distanciando-se das raízes do jazz americano, seria mais um estilo explorado. Já no samba consagrou “Tiro ao Álvaro” e “Iracema” (Adoniran Barbosa), entre outros. Notabilizou-se pela uniformidade vocal, primazia técnica e uma afinação a toda prova. O registro vocal pode ser definido como de uma mezzo-soprano característico com um fundo levemente metálico e vagamente rouco.
Desde a década de 1960, quando surgiram os especiais do Festival de Música Popular Brasileira pela TV Record, até o final da década de 1980, a televisão brasileira foi marcada pelo sucesso dos espetáculos transmitidos; apresentando os novos talentos, registravam índices recordes de audiência. No Festival conheceu Chico Buarque, mas acabou desistindo de gravá-lo devido “à impaciência com a timidez do compositor”. Elis Regina participou do especial Mulher 80 pela Rede Globo de Televisão, num desses momentos marcantes para os telespectadores. O programa exibiu uma série de entrevistas e musicais cujo tema era a mulher e a discussão do papel feminino na sociedade de então, abordando esta temática no contexto da música nacional e da inegável preponderância das vozes femininas: Maria Bethânia, Fafá de Belém, Zezé Motta, Marina Lima, Simone, Rita Lee, Joanna, Elis Regina, Gal Costa e as participações especiais das atrizes Regina Duarte e Narjara Turetta, que protagonizaram o seriado Malu Mulher.
A antológica interpretação de “Arrastão” de Edu Lobo e Vinícius de Moraes, no Festival, escreveu um novo capítulo na história da música brasileira, inaugurando a MPB - Música Popular Brasileira e apresentando uma Elis ousada. Diz assim a letra:
“Ê, tem jangada no mar/Ê, hoje tem arrastão/Ê, todo mundo pescar/Chega de sombra, João/Jovi/Olha o arrastão entrando no mar sem fim/Ê, meu irmão, me traz Iemanjá prá mim/Minha Santa Bárbara/Me abençoai/Quero me casar com Janaína/Ê, puxa bem devagar/Ê, ê, ê, já vem vindo o arrastão/Ê, é a rainha do mar/Vem, vem na rede João/Prá mim/Valha-me meu Nosso Senhor do Bonfim/Nunca jamais se viu tanto peixe assim”.
Uma interpretação inesquecível, encenada pouco depois de completar apenas 20 anos de idade e coroada com o reconhecimento do Prêmio Berimbau de Ouro. O Troféu Roquette Pinto veio na sequência, elegendo-a a Melhor cantora do ano. Fã incondicional de Angela Maria, a quem prestou várias homenagens, Elis impulsionava uma carreira não menos gloriosa, possibilitando o lançamento do primeiro LP individual, “Samba eu canto assim” (CBD, selo Philips). Pioneira, em 1966 lançou o selo Artistas, “registrando o primeiro disco independente produzido no Brasil”, intitulado “Viva o Festival da Música Popular Brasileira”, gravado durante o festival.
Mais uma vitoriosa participação no III Festival de Música Popular Brasileira junto à TV Record, com a canção “O cantador” de Dori Caymmi e Nelson Motta, classificando-se para a finalíssima e reconhecida com o prêmio de Melhor Intérprete. Em 1968, uma viagem à Europa a lança no mercado musical internacional, conquistando grande sucesso, principalmente no Olympia de Paris, “onde se tornou a primeira artista a se apresentar duas vezes num mesmo ano, naquela que é a mais antiga sala de espetáculos musicais de Paris”. Além disso, vale lembrar que foi Elis Regina quem também lançou boa parte dos compositores até então desconhecidos: Milton Nascimento, Renato Teixeira, Tim Maia, Gilberto Gil, João Bosco e Aldir Blanc, Sueli Costa, entre outros. Um dos grandes admiradores, Milton Nascimento, “a elegeu musa inspiradora e a ela dedicou inúmeras composições”.
Durante os anos 1970, aprimorou constantemente a técnica e domínio vocal, registrando em discos de grande qualidade técnica parte do melhor da sua geração de músicos. Patrocinado pela marca Philips na mostra Phono 73, com vários outros artistas, deparou-se com uma plateia fria e indiferente, distância quebrada com a calorosa apresentação de Caetano Veloso quando afirma: “Respeitem a maior cantora desta terra”. Em julho lançou Elis. Em 1975, com o espetáculo “Falso Brilhante”, que mais tarde originou um disco homônimo, atinge enorme sucesso, ficando mais de um ano em cartaz e realizando quase 300 apresentações. Lendário, tornou-se um dos mais bem sucedidos espetáculos da história da música nacional e um marco definitivo da carreira.
Ainda teve grande êxito com o espetáculo “Transversal do Tempo”, em 1978, de um clima extremamente político e tenso; com o “Essa Mulher” em 1979, sob a direção de Oswaldo Mendes, que estreou no Anhembi em São Paulo e excursionou pelo Brasil no lançamento do disco homônimo; com o samba “Saudades do Brasil”, em 1980, sucesso de crítica e público pela originalidade, tanto nas canções quanto nos números com dançarinos amadores, direção de Ademar Guerra e coreografia de Márika Gidali (Ballet Stagium); e finalmente o último espetáculo, “Trem Azul”, em 1981, direção de Fernando Faro. Data desta época a frase: “Neste país só duas cantam: Gal e eu”.
Memorial em homenagem a Elis Regina.
Historicamente falando em poucos anos, Elis Regina sai do Inferno para o Paraíso. Ao Inferno, ela chega ao ser “enterrada” no “Cemitério dos Mortos-Vivos do Cabôco Mamadô” - para onde o cartunista Henfil, no semanário O Pasquim, mandava pessoas que, na opinião dele, colaboravam com a ditadura militar no início da década de 1970. Ao Paraíso, Elis ascende ao liderar um grupo de artistas de esquerda: Fagner, Belchior, Gonzaguinha, João Bosco, Jards Macalé e Carlinhos Vergueiro, entre outros, que fazem vários shows para levantar dinheiro para o Fundo da Greve do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, no ABC paulista, em 1979. Essa vivência política é um lado pouco conhecido de Elis Regina que, aos 18 anos, foi sozinha para o Rio de Janeiro, onde chegou a morar num quarto-e-sala na Rua Barata Ribeiro, 200, em Copacabana, um prédio tipo “balança-mas-não-cai”, celebrizado numa peça de teatro: “Um Edifício Chamado 200”, de Paulo Pontes.
Dirigido por Carlos Imperial, “Um Edifício Chamado 200” é um filme brasileiro de 1973, baseado em peça homônima de Paulo Pontes e José Renato. Alfredo Gamela é um carioca de 20 anos, que vive num pequeno apartamento num edifício “treme-treme” de Copacabana com sua amante Karla e, embora não tenha dinheiro, gosta de aparentar que é rico. Eles estão há dois dias sem comer, quando a situação se agrava com o aparecimento de Ana, ex-amante de Gamela, em busca de ajuda. As mulheres descobrem que Gamela vive num mundo de mentira, mas ele supera as dificuldades momentâneas vendendo seus últimos pertences. Karla e Ana saem para comprar alimentos e Gamela fica preenchendo seu cartão de Loteria Esportiva.
Desnecessário dizer que O Pasquim foi um semanário brasileiro editado entre 26 de junho de 1969 e 11 de novembro de 1991, reconhecido por seu papel de oposição ao regime militar. De uma tiragem inicial de 20 mil exemplares, que a princípio parecia exagerada, o semanário, que sempre se definia como um hebdomadário atingiu a marca de mais de 200 mil em seu auge, em meados dos anos 1970, se tornando um dos maiores fenômenos do mercado editorial brasileiro. A princípio uma publicação comportamental que falava sobre sexo, drogas, feminismo e divórcio, entre outros, o tabloide foi se tornando mais politizado à medida que aumentava a repressão da ditadura militar, principalmente após a promulgação do repressivo ato AI-5. O Pasquim passou então a ser porta-voz da indignação social brasileira.
Em 1965, acontece o estouro: Elis Regina vence o I Festival de Música Popular, da TV Excelsior, com “Arrastão”, como vimos de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. Elis fez pelo menos três shows antológicos: Falso Brilhante (1975), Transversal do Tempo (1977) e Saudade do Brasil (1980). Dos seus discos, a maioria de qualidade acima da média, o melhor é o que gravou com Tom Jobim, em 1974, nos EUA, “considerado uma obra-prima, mesmo por quem não gosta de Elis Regina”. Por causa do seu gestual no palco, agitando os braços como se nadasse de costas, Elis foi chamada de “Elis-Cóptero” e “Élice-Regina”, mas o apelido que pega, mesmo, é o que lhe dá Vinicius: “Pimentinha”. Sim, porque, dali em diante, já como estrela conhecida no país inteiro, ela iria, por assim dizer, “apimentar muitos aspectos da vida cultural brasileira, durante praticamente duas décadas”.
Do cemitério à anistia - O episódio mais apimentado da vida de Elis, sem dúvida, foi o seu “enterro” no Cemitério do “Cabôco Mamadô”. Lá, ela fez companhia a gente como Wilson Simonal, Amaral Neto que fora um deputado carioca de direita, defensor da pena de morte e alcunhado de Amoral Nato, e Flávio Cavalcanti, um apresentador de TV que liderou, metralhadora na mão, a invasão e depredação do jornal Última Hora, no Centro do Rio de Janeiro, logo no início de abril após o golpe político-militar de 1de abril de 1964. Elis foi “enterrada” por Henfil por duas atitudes em relação ao Governo Federal, na época chefiado pelo ditador-de-plantão general Garrastazu Médici, o mais sanguinário dos militares-presidentes. Primeiro, foi a gravação de uma chamada veiculada em todas as TVs, a partir de abril, conclamando o povo a cantar o Hino Nacional no dia 7 de setembro de 1972. Foi o ano do Sesquicentenário da Independência, uma data que a ditadura militar aproveitou ao máximo, inclusive com a organização de uma Mini Copa de futebol, vencida pela Seleção Brasileira.
O termo discurso pode também ser definido do ponto de vista lógico. Quando pretendemos significar algo a outro é porque temos a intenção de lhe transmitir um conjunto de informações coerentes - essa coerência é uma condição essencial para que o discurso seja entendido. São as mesmas regras gramaticais utilizadas para dar uma estrutura compreensível ao discurso que simultaneamente funcionam com regras lógicas para estruturar o pensamento. Um discurso político, por exemplo, tem uma estrutura e finalidade muito diferente do discurso econômico, mas politicamente pode operar a dimensão econômica produzindo efeitos sociais específicos em termos de persuasão. Vários outros artistas também apareceram em chamadas de TV, promovendo a Olimpíada do Exército, em filmes produzidos pela Assessoria Especial de Relações Públicas da Presidência da República (AERP).
A AERP foi do ponto de vista da análise comparada uma reedição atualizada do DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda (cf. Tavares, 1975; 1982a; 1982b; 1983) da ditadura do Estado Novo (1937-1946). O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi criado no Brasil em 1939, em substituição ao “Departamento de Propaganda e Difusão Cultural” (DPDC) que, em 1934, havia substituído ao Departamento Oficial de Propaganda (DOP), cuja estrutura obsoleta obrigou ao governo a ampliar sua abrangência. O DIP foi extinto em 1945, de modo que a criação, o objetivo e a história de todos esses departamentos se confundem com a chamada “Era Vargas”. O DIP serviu para promover propagandas da política populista de Getúlio Vargas.
Do ponto de vista ideológico criaram-se cartilhas para serem distribuídas às crianças nas escolas e para a imprensa, curtas para exibição obrigatória antes dos filmes nos cinemas e o programa radiofônico nacional “Hora do Brasil”, retransmitido em horário nobre, antes das radionovelas ouvidas por praticamente toda a classe média e alta brasileira. O DIP tornou obrigatória a presença da foto oficial de Getúlio Vargas em lugar de destaque em todos os estabelecimentos comerciais do país (padarias, boticas, armazéns, etc.), divulgando e impondo a figura do ditador em todas as instâncias da vida política e social do Brasil, numa reprodução dos métodos implantados na Alemanha nazista por Joseph Goebbels, mentor de Filinto Muller como se sabe, torturador e colaborador de Vargas. Além de implantar a revista Cultura Política (1941-1945), no Rio de Janeiro, para fazer propaganda do governo, o DIP instituiu o dia 19 de abril, aniversário do presidente Getúlio Vargas, como o “Dia do Presidente” e, por intervenção direta ou por meio da censura, obriga a imprensa a fazer propaganda da ditadura varguista.
De acordo com a revista Cultura Política, os intelectuais tinham um papel de fundamental importância na estruturação da “nova ordem”. Formadores da opinião pública, a eles cabiam a função “de unir governo e povo, traduzindo a voz da sociedade”. A revista contava com a colaboração da nata da intelectualidade brasileira, abrigando as mais diversas correntes de pensamento. Entre seus colaboradores estavam os próprios ideólogos do regime: além de Almir de Andrade, Francisco Campos , Azevedo Amaral, Lourival Fontes e Cassiano Ricardo. Mas curiosamente Graciliano Ramos, Gilberto Freyre e Nelson Werneck Sodré também colaboraram com artigos.
Por isso, guardadas as proporções, a atriz Marília Pêra, Paulo Gracindo, Tarcísio Meira e Glória Menezes, entre outros, também foram “enterrados”. A segunda atitude de Elis que provocou a ira-santa de Henfil (e um segundo “enterro…”) foi a apresentação dela na Olimpíada da Semana do Exército, em setembro do mesmo ano, 1972. Hoje, mais de 30 anos depois do “Cemitério do Cabôco Mamadô” do tabloide Pasquim, é preciso entender aqueles “tempos-de-chumbo” para compreender a postura radical de Henfil. Vivia-se um momento de intensa repressão política. Mas a razão principal do “enterro” de Elis está no próprio Henfil - um artista engajado politicamente que não fazia concessões, e pagou por isso –, que tinha um irmão exilado, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, um militante que fugiu do Brasil para não ser assassinado pelos órgãos de segurança.
Enfim, vale lembrar que a expressão “anos de chumbo” foi aplicada inicialmente a um fenômeno da Europa Ocidental, relacionado com a chamada Guerra Fria (cf. Arbex Jr., 1997) e com a estratégia da distensão. Designa o período compreendido aproximadamente entre o pós-1968 e o fim dos anos 1970, na Alemanha, ou meados dos anos 1980, na França e na Itália - anos marcados por violência política, guerrilha revolucionária armada e terrorismo de extrema esquerda e de extrema direita, bem como pelo endurecimento do aparato repressivo dos Estados democráticos da Europa Ocidental. Posteriormente a expressão passou a designar esse período de radicalização política, também fora da Europa - particularmente nos países do Cone Sul.
E o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, indiretamente, teve a ver com um dos motivos para a passagem de Elis do “Inferno para o Paraíso”: a gravação, em março de 1979, de uma das músicas politicamente mais engajadas da MPB, “O Bêbado e a Equilibrista”. De João Bosco e Aldir Blanc, a música foi uma espécie de hino de um dos mais importantes movimentos políticos da História do Brasil: a luta pela anistia ampla, geral e irrestrita. A campanha foi lançada em janeiro de 1978, com a criação do Comitê Brasileiro de Anistia (CBA), no Rio de Janeiro. “O Bêbado e a Equilibrista” - que emociona até hoje, fala na “volta do irmão do Henfil”. Na época, Betinho - que, como Henfil e o outro irmão, Francisco Mário, eram hemofílicos e pegou Aids numa transfusão de sangue - estava no México, esperando, justamente, a Anistia.
A partir de 1968, com a instituição do AI-5 - Ato Institucional n. 5, inicia-se a fase de maior repressão de todo o governo militar. O fechamento do Congresso Nacional, a suspensão dos direitos políticos, a prisão e o exílio daqueles que se opunham ao poder marcaram os anos seguintes. Muitos intelectuais e cantores, como Chico Buarque e Gilberto Gil que se despede do Brasil com o samba, “Aquele Abraço” foram obrigados a deixar o país. Como vimos Elis Regina se tornou conhecida nacionalmente em 1965, ao vencer o Festival de Música Popular Brasileira da TV Excelsior, com a música “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes. Intensificou sua carreira no exterior em 1969, ano em que fez show nas principais capitais europeias e latino-americanas. Em 1972, o governo militar organizou um show em homenagem ao Sesquicentenário da Independência. Por causa disto. A participação de Elis nesse evento acabou levando-a ao “cemitério dos mortos-vivos”, famosa seção de quadrinhos que o cartunista Henfil mantinha no tabloide Pasquim.
Para desancar as personalidades que de alguma forma aderiam ao regime, Henfil promovia o enterro delas no jornal. Outros “mortos-vivos” enterrados pelo cartunista foram Marília Pera, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Tarcísio Meira e Glória Menezes. Cinco anos mais tarde, ela e o cartunista se tornaram grandes amigos. Convidada por Henfil, Elis aderiu à campanha pela Anistia, principalmente pela volta de Betinho, irmão do amigo. A adesão dela foi representada pela canção “O Bêbado e a Equilibrista”, gravada em 1979. No trecho, “meu Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil/com tanta gente que partiu num rabo-de-foguete/chora a nossa pátria, mãe gentil/choram Marias e Clarisses no solo do Brasil”... o apelo político é explícito.
A música contém uma mensagem de esperança e otimismo ao “povo brasileiro”, para lembramos de Ribeiro (1995) evidenciado na última estrofe. Essas duas características sempre fizeram parte do repertório de Elis Regina, desejando uma situação melhor para seu país. O movimento pela anistia deu resultado, e em 1979, com a ditadura já enfraquecida, foi promulgada a Lei da Anistia. Seis anos mais tarde, em 1985, o regime militar chegava ao fim, era iniciada uma nova era na história política brasileira. Mas Elis não chegou a presenciar esse momento, infelizmente, pois morreu no dia 19 de janeiro de 1982.
Elis e Henfil: cara-a-cara – O “coveiro” Henfil e sua “defunta” Elis acabaram se encontrando, por iniciativa dela. Sobre esse momento, Henfil deu, três anos depois da morte da cantora, um depoimento tão sincero quanto comovente a Regina Echeverria, autora de “Furacão Elis” (1985). O cartunista não pediu desculpas por tê-la “enterrado”, mas se arrependeu. Os dois acabaram amigos sinceros, trabalharam juntos e se falaram até dois meses antes da morte da cantora. Com a palavra, Henfil:
- Foi igualzinho a hoje. De repente, os artistas são arrebanhados pelo Governo, só que – eu não sabia – debaixo de vara, de ameaças, para fazerem uma campanha da Semana do Exército. O que eu vi, na realidade, foi o comercial de televisão. Me aparece o Roberto Carlos dizendo: “Vamos lá, pessoal, cantar o Hino Nacional”. E, de repente, a Elis surge regendo um monte de cantores, de fraque de maestro, regendo o Hino Nacional. E nessa época nós estávamos no Pasquim e eu, mais que os outros, contra-atacando todos aqueles que aderiram à ditadura, ao ditador-de-plantão. (…). Eu só me arrependo de ter enterrado duas pessoas - Clarice Lispector e Elis Regina. (…). Eu não percebi o peso da minha mão. Eu sei que tinha uma mão muito pesada, mas eu não percebia que o tipo de crítica que eu fazia era realmente enfiar o dedo no câncer. Quando nos encontramos anos depois, (…) fomos jantar numa cantina perto do Teatro Bandeirantes e ela fez questão de sentar na minha frente. (…) De repente, ela começou a falar: “Pô, bicho, eu te amo tanto, bicho, te gosto tanto”. E eu já não estava gostando dessa história de “bicho”, porque eu não gostava do jeito que ela falava, nunca gostei. Daí me irritei e disse: “Elis, o que você está querendo dizer com isso? ”. Aí, ela começou a chorar. As pessoas na mesa enfiaram a cara no prato, todos sabiam o que eu tinha feito, só eu não sabia. Ela disse: “Pô, você me enterrou”, e começou a me esculhambar, dizendo que aquilo foi uma covardia, que ela estava ameaçada. (…) Elis nunca me perguntou se eu estava atacando porque ela estava defendendo um regime militar que queria matar meu irmão. (…) Resolvi engolir. Ela terminou de falar, entendeu meu subtexto: “Tá, Elis, eu aceito”. (…) Evidente que os militares estavam pressionando o país inteiro. Eu sabia disso, os militares faziam censura prévia no meu jornal (Pasquim), presença física, todo dia. (…) Então, tinha todo o direito de criticar uma pessoa que ia para a televisão se entregar. Eu não mudei em nada e ela percebeu isso.
Elis Regina casou duas vezes: com o compositor Ronaldo Bôscoli e com o músico César Camargo Mariano, e tiveram três filhos, o músico e produtor João Marcelo Bôscoli e os cantores Pedro Mariano e Maria Rita. Morreu em São Paulo por overdose de cocaína, às 11h45 do dia 19 de janeiro de 1982. O velório foi no Teatro Bandeirantes, por onde passaram mais de 60 mil pessoas. No dia seguinte, 20 de janeiro, Elis é enterrada no Cemitério do bairro Morumbi. Seu corpo vestia uma roupa que ela foi proibida, pela Censura, de usar no show “Saudade do Brasil” - uma camiseta com um desenho da Bandeira do Brasil onde, no lugar do dito Comtista “Ordem e Progresso”, estavam escrito: ELIS REGINA. Quer dizer: Elis Regina Carvalho Costa, politicamente falando, riu por último ao ser enterrada com a roupa censurada. Tanto que, hoje, é lembrada pela música “O Bêbado e a Equilibrista” e a Anistia, e não pela sua “passagem” pelo Cemitério dos “Mortos-Vivos do Cabôco Mamadô” do irmão do Betinho.
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* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Bibliografia geral consultada:
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