sábado, 15 de setembro de 2012

Outro Sartre: Amor, Cinema & Política.

Ubiracy de Souza Braga*
Jean-Paul Charles Aymard Sartre (1905-1980) foi um filósofo, escritor e crítico francês, conhecido como “representante do existencialismo”. Entre 1929 e 1931, Sartre presta o serviço militar e torna-se soldado meteorologista. Escreve alguns contos e começa a trabalhar em seu primeiro romance: Factum sur la contingeance, que depois viria a se chamar: La Nausée. Embora tenha se candidatado ao cargo de Auxiliar de Catedrático no Japão, ele é nomeado professor de filosofia de um liceu em Havre onde permanece até 1936. Sartre ainda seria professor em Lion e Paris até 1944, quando abandonou definitivamente o magistério.
Desnecessário dizer que Sartre em 1924 ingressou na École Normale Supérieure na mesma turma de Nizan, Daniel Agache e Raymond Aron. Músico e ator talentoso e sempre disposto a participar de brincadeiras e eventos sociais, Sartre torna-se muito popular entre os colegas. Os alunos da escola se dividem em grupos de afinidades religiosas, “ateus” e “carolas”, e facções políticas: socialistas, comunistas, reacionários, pacifistas. Sartre adere aos ateus e aos pacifistas e enquanto Aron e Nizan aderem aos círculos socialistas e comunistas e começa a participar da vida política francesa, Sartre mantém o individualismo e o desinteresse pela política que conservaria até o fim da Segunda Guerra. No campo filosófico, além de Bergson, passou a ler Nietzsche, Kant, Descartes e Spinoza. Já na École começa a desenvolver as primeiras ideias de uma “filosofia da liberdade leiga”, tendo como representação a oposição entre os seres e a consciência, do absurdo e da contingência que ele viria a desenvolver posteriormente em suas grandes obras filosóficas. Seu principal interesse filosófico é o indivíduo e a psicologia.  
            Em 1928 presta o exame de mestrado e é reprovado. Durante o ano de preparação para a segunda tentativa, estuda com Nizan e René Maheu na Sorbonne. Conhece a namorada de Maheu, Simone de Beauvoir que mais tarde se tornaria sua companheira e colaboradora até o fim da vida. Maheu havia apelidado Simone de Beauvoir de “Castor”, devido à semelhança de seu nome com Beaver (castor em inglês) e também “porque ela trabalhava como um castor”. Sartre assume o apelido e passa a chamá-la de Castor pessoalmente e em todas as cartas que lhe escreveu. Na segunda tentativa do mestrado, Sartre passa em primeiro lugar, no mesmo ano em que Beauvoir obtém a segunda colocação. Lembramos nessas notas que Sartre e Beauvoir nunca formaram um casal monogâmico. Não se casaram e mantinham uma “relação aberta”. Sua correspondência é repleta de confidências sobre suas relações com outros parceiros. Além da relação amorosa, eles tinham uma grande afinidade intelectual. Beauvoir colaborou com a obra filosófica de Sartre, revisava seus livros e também se tornou uma das principais filósofas do movimento existencialista. Sua obra literária que inclui diversos volumes autobiográficos frequentemente relata o processo criativo de Sartre e dela mesma.
Em 1933, ele é apresentado à fenomenologia de Husserl por Raymond Aron, que havia retornado de um período como bolsista do Institut Français em Berlim. Percebendo a semelhança dessa corrente à sua própria teoria da contingência, Sartre fica fascinado e imediatamente começa a estudar a fenomenologia através de uma obra introdutória. Por sugestão de Aron, candidata-se à mesma bolsa e, aprovado, permanece em Berlim entre 1933 e 1934. Durante esta viagem, estuda a fundo a obra de E. Husserl e conhece também a filosofia de Martin Heidegger que influenciou fortemente Jean-Paul Sartre, na França, e outros existencialistas. Publica em 1936 o artigo La Transcendence de l`Égo, uma crítica à teoria do Ego Husserliana que por sua vez se baseava no Cogito cartesiano.   
Em fevereiro de 1934, Beauvoir visita Sartre em Berlim, a fim de certificar-se de que a nova paixão dele (pela esposa de um amigo) não a ameaça. De volta a Rouen, Simone acaba percebendo entre suas alunas Olga Kosakiewicz, “a pequena russa”, por quem rapidamente se afeiçoa, não demorando a ser correspondida. Com o retorno de Sartre à França, Beauvoir, ele e Olga iniciam uma espécie de triângulo amoroso, o Trio. Jacques-Laurent Bost, ex-aluno de Sartre no Havre, acaba se juntando ao grupo de amigos de Simone e Sartre, “la petite famille”, que fazem do Hôtel Le Petit Mouton seu quartel-general.
O filósofo Gabriel Marcel aplica o termo “Existencialismo” ao conjunto de ideias que a obra de Sartre e Beauvoir corporifica. Em junho, em virtude de uma denúncia da mãe de Nathalie Sorokine, que acusa Simone de corrupção de menores, Beauvoir é excluída da universidade, perdendo seu salário e não podendo mais lecionar em lugar algum da França. Embora nada tenha sido provado (devido a uma estratégia muito bem ensaiada pelos membros da petit famille) e o caso encerrado, o reitor da Sorbonne acha inadmissível manter Beauvoir no corpo docente. Ela não era casada e vivia há anos em concubinato com Sartre; não tinha domicílio fixo, residia em hotéis, corrigia os trabalhos das alunas em cafés e dava aulas sobre os escritores homossexuais Proust e Gide; além disso, Simone demonstrava profundo desprezo por toda a disciplina moral e familiar. Beauvoir será readmitida depois da guerra, entretanto, decidirá não mais voltar a lecionar. Para ganhar a vida, ela consegue um trabalho mensal na Radio-Vichy.
Beauvoir participa na casa de Michel Leiris, da leitura de uma peça de teatro escrita por Picasso: Le Désir Attrapé par la Queue. Conhece Salacrou, Bataille, Limbour, Lacan, Picasso e Braque. Entre março e abril acontecem as fiestas, agitados encontros que se estendem pela madrugada da Paris ocupada. Para tanto, la petite famille se reveza com outros amigos na escolha dos locais de encontro: o apartamento ou quarto de hotel de um deles. Entre abril e julho Simone escreve sua única peça Les Bouches inutiles, que se mostra um grande fracasso quando encenada, saindo de cartaz depois de 50 apresentações. Em fevereiro de 1934, Beauvoir visita Sartre em Berlim, a fim de certificar-se de que a nova paixão dele (pela esposa de um amigo) não a ameaça. De volta a Rouen, Simone acaba percebendo entre suas alunas Olga Kosakiewicz, “a pequena russa”, por quem rapidamente se afeiçoa, não demorando a ser correspondida. Com o retorno de Sartre à França, Beauvoir, ele e Olga iniciam uma espécie de triângulo amoroso, o Trio. Jacques-Laurent Bost, ex-aluno de Sartre no Havre, acaba se juntando ao grupo de amigos de Simone e Sartre, “la petite famille”, que fazem do Hôtel Le Petit Mouton seu quartel-general.
Simone e Sartre “adotam” Olga, responsabilizando-se por seus estudos, que não tardam a fracassar. O relacionamento do Trio experimenta seu apogeu, e logo em seguida vem o declínio. Olga inicia um envolvimento com Bost. Beauvoir começa a escrever uma série de contos e novelas que mais tarde comporiam o livro Quando o Espiritual Domina. No verão de 1936, transferida para Paris, Simone começa a lecionar no Lycée Molière, instalando-se no Hôtel Royal Bretagne. Sartre é transferido para Lion, mas o Trio e la petite famille continuam a existir, fazendo do Dôme seu novo ponto de encontro. Vítima de uma congestão pulmonar, Beauvoir é hospitalizada. Para uma convalescença apropriada ela se muda para um hotel mais confortável (e caro) na rue Delambre. Em 1937, durante uma viagem pelos Alpes, Simone envolve-se com Bost, que lhe fazia companhia - o que, de certo modo, acaba provocando a dissolução definitiva do Trio. Incentivada por Sartre a colocar mais de si mesma em seus livros, Beauvoir começa a escrever A Convidada.
Início de um “novo trio”: Beauvoir, Sartre & Bianca. Entretanto, em virtude da guerra, o relacionamento é bruscamente interrompido. Em 3 de setembro a Segunda Guerra Mundial é declarada. Sartre é convocado para o exército, Bost também. Numa Paris subitamente vazia, Simone começa a escrever um diário específico sobre este período, do qual uma parte será incorporada, bem mais tarde, em A Força das Coisas. Dispensada de suas funções no Lycée Molière desde a declaração de guerra, Beauvoir consegue, em outubro, um lugar como professora no Lycée Camille-Sée e também no Lycée Henri-IV. Nestas instituições suas aulas eram frequentemente interrompidas pelos alertas de bombardeio. Muda-se para o Hôtel du Danemark, na rue Vavin. Apesar (ɐpə'zardə) de não ser casada com Sartre, Simone obtém um salvo-conduto que lhe permite visitá-lo em Brumath. No tempo em que passam juntos, leem o que haviam escrito “cada um na ausência do outro”.
Para sermos breves, o termo “feminismo francês” se refere a um ramo do feminismo que teria nascido a partir de um grupo de estudiosos franceses, da década de 1970 à de 1990. O feminismo francês, comparado ao anglófilo, se destaca por uma abordagem mais filosófica e literária, e seus escritos tendem a ser efusivos e metafóricos, menos preocupados com a doutrina política, e geralmente mais focados nas teorias “do corpo”. O termo inclui autores que não são necessariamente franceses, mas que trabalharam substancialmente na França ou na tradição francesa, tais como Julia Kristeva e Bracha Ettinger. No livro O Segundo Sexo, de 1949, Simone Beauvoir realiza uma análise detalhada da opressão sofrida pela mulher e um tratado com as fundações do feminismo contemporâneo. O livro estabelece um “existencialismo feminista”, que determina uma revolução moral. Como existencialista, aceitou o preceito de Jean-Paul Sartre segundo o qual “a existência precede a essência” e, portanto, “não se nasce uma mulher, torna-se uma”. Sua análise se concentra na construção social da Mulher como “o Outro”, que ela identifica como sendo fundamental à opressão da mulher. Um de seus argumentos é o de que as mulheres teriam sido consideradas, ao longo da história, como anormais e transviadas, e sustenta que até mesmo Mary Wollstonecraft considerava os homens como o ideal aos quais as mulheres deviam aspirar; para o feminismo seguir adiante, segundo ela, esta atitude deveria ser abandonada.
Em agosto de 1944 Paris é libertada, mas a guerra continua. Pyrrhus et Cinnéas é lançado pela Gallimard, sendo bem acolhido. Beauvoir conhece Hemingway, e faz amizade com Nathalie Sarraute e Violette Leduc. Em 1945, juntamente com Sartre, Simone torna-se uma das fundadoras da revista Les Temps Modernes, que permanecerá no centro da vida intelectual francesa pelos próximos 25 anos, tomando posições radicais e de esquerda nas frentes nacional e internacional de libertação. Viaja a Portugal, de onde escreve vários artigos para o Combat, assim como O Sangue dos Outros, é publicado em setembro, tornando-se de imediato sucesso de crítica e de público. Segundo romance de Simone de Beauvoir, O Sangue dos Outros narra o conflito de um membro da Resistência, que se vê forçado a optar entre o engajamento social e o dever pessoal. Seguindo o pensamento existencialista, a autora procura analisar “a maldição original que constitui, para cada indivíduo, sua coexistência com todos os outros”.
Vale lembrar que no ano 1938 Jean-Paul Sartre publica o romance La Nausée e a coletânea de contos Le mur. O livro A Náusea apresenta, em forma de ficção, o tema da contingência e torna-se seu primeiro sucesso literário, o que contribui para o início da influência de Sartre na cultura francesa e no surgimento da “moda existencialista” que dominou Paris na década de 1940. Ele acreditava que os intelectuais têm de desempenhar um papel ativo na sociedade. Era, portanto, um artista militante, e apoiou causas políticas de esquerda com a sua vida e a sua obra. Repeliu as distinções e as funções oficiais e, caras nestes tempos e por estes motivos, se recusou a receber o Nobel de Literatura de 1964. Sua filosofia defendeu a tese na qual: no caso humano (e só no caso humano) a existência precede a essência, enquanto todas as outras coisas são o que são, sem se definir, e por isso sem ter uma “essência” posterior à existência.
Nele Sartre desafia o conceito de que o ego “é um conteúdo da consciência” e afirma que ele “está fora da consciência, no mundo e a consciência se dirige a ele como a qualquer outro objeto do mundo”. Este é um dos primeiros passos para livrar a consciência de conteúdos e torná-la o “Nada” que mais tarde seria um dos conceitos-chave do existencialismo. De volta à França, continua a trabalhar nas mesmas ideias e entre 1935 e 1939 escreve L`Imagination, L`Imaginaire e Esquisse d`une théorie des émotions. No caso de livro: Lo Imaginario. Psicologia Fenomenologica de la Imaginacion (1948), Sartre faz a descrição de seu método:
Pese a algunos prejuicios, sobre los cuales pronto hemos de volver, es seguro que, cuando produzco en mí la imagen de Pedro, es Pedro el objeto de mi consciência actual. En tanto que esta consciência se mantega inalterada, podré dar una descripción del objeto tal como se me aparece en la imagen, pero no de la imagen en tanto que es imagen. Para determinar los caracteres propios de la imagen como imagen, es necessário recurrir a un nuevo acto de consciência: es necessário recurrir a um nuevo acto de consciência: es necessário reflexionar (...). Es este acto reflexivo el que permite formular el juicio: ´tengo una imagen` (...). Pero hemos de ver más adelante que estas afirmaciones reposan sobre un error. En efecto, la confusión es imposible. Eso que se há convenido em llamar ´imagen`, no se da imediatamente como tal a la reflexión. Pero es que no se trata aqui de obtener una revelación metafísica e inefable. Si estas conciencias se distinguen imediatamente de todas las demés; es porque se presetan a la reflexión com ciertas marcas, comn ciertas características que determinan, de imediato, el juicio ´tengo una imagen´. El acto de reflexión tiene, entonces, un contenido determinado al cual llamaremos la esencia de la imagen. Esta esencia es la misma para todo hombre; la primera y primordial tarea del psicólogo es la de explicarrla, es la describirla, es la de fijarla”.  Mas para Sartre: “La Imagen es una Conciencia”, e tem como caraterística que: “La consciência imaginante supone a su objeto como una nada”. Pero es bien evidente que nuestra descripción imaginante sería muy incompleta sí no intentáramos a saber: 1º) Cómo la conciencia irreflexiva supone a su objeto; 2º) Cómo esta conciencia se aparece a sí minsma en la conciencia no-tética que acompanha la situación del objeto (cf. Sartre, 1948: 23-24).
             Volta então suas pesquisas para Martin Heiddegger e começa a escrever L´Être et le néant, onde condensa todos os conceitos importantes da primeira fase de seu sistema filosófico, mas para o que nos interessa:
Du moment qu'il exist des êtres qui ont à être ce qu'ils sont, le fait d'être ce qu'on est n'est nullement une caractéristique purement axiomatique: il est un principe contingent de l'être en soi. Em ce sens, le principe d'identité, principe des jugements analytiques, est aussi un principe régional synthétique de l'être. Il désigne l'opacité de l'êtreen- soi. Cette opacité ne tient pas de notre position par rapport à l'en-soi, au sens où nous serions obligés de l'apprendre et de l'observer parce que nous sommes 'dehors'. L'être-en-soi n'a point de dedans qui s'opposerait à un dehors et qui serait analogue à un jugement, à une loi, à une conscience de soi. L'en-soi n'a pas de secret: il est massif. En un sens, on peut le désigner comme une synthèse. Mais c'est la plus indissoluble de toutes: la synthèse de soi avec soi” (cf. Sartre, 1955: 33).
            Portanto, toda consciência supõe a seu objeto, mas cada uma sua própria maneira. A percepção, por exemplo, supõe a seu objeto como existindo. A imagem encerra, ela também, um ato de crença o ato posicional. Este ato pode tomar quatro formas e nada mais que quatro: pode supor ao objeto como inexistente, ou como ausente, ou como existindo em outra parte; pode também “neutralizar-se”, isto é, não supondo a seu objeto como existindo. Dois destes atos são negociações: o quarto corresponde a uma suspensão ou neutralização da tese. O terceiro, que é positivo, supõe uma negação implícita da existência atual e presente do objeto. Estes atos posicionais - esta observação é capital - não se agregam à imagem uma vez que se tem constituído: o ato posicional é constituído da consciência da imagem. Toda outra teoria, ademais de que seria contrária aos dados da reflexão, nos faria cair na ilusão da imanência.
            A analítica existencial desenvolvida por Sartre em O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica (1997) tem como resultado maior a sua noção de liberdade. Todo o percurso argumentativo trilhado pelo nosso pensador nos conduziu ao Para-si como um tipo de ser que deve fazer-se ao invés de simplesmente ser. A partir do momento que Sartre recusou quaisquer tipos de “conteúdos” para a consciência, só restou a esta apoiar-se em sua própria intencionalidade e projetar-se no futuro, isto é, criar indefinidamente seu próprio ser. Ademais, a negação interna que faz com que o Para-si apreenda-se como não sendo o mundo que lhe circunda obrigou-o a escolher-se, uma vez que lhe é ontologicamente vedada a possibilidade de ter a “permanência” e plenitude das pedras. Diante disso, julgamos encontrar implícitos no pensamento sartreano os pressupostos de uma filosofia da ação, uma vez que o ser do Para-si é sempre posto pelo filósofo em termos de “escolhas” e de um “fazer-se”. Ao recusar quaisquer determinismos para o Para-si, Sartre o considerará em termos de liberdade. E esta liberdade estará toda em ato.
            Enfim, para Sartre, dizer que a existência precede a essência “significa que, em primeira instância, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. O homem, tal como o existencialista o concebe, se não é passível de uma definição, é porque de início não é nada: só posteriormente será alguma coisa e será aquilo que ele fizer de si mesmo”. Podemos notar aqui que Sartre parte de uma “indeterminação” do homem, ou melhor, parte do fato concreto da existência do homem no mundo, quando ele apreende a si mesmo na sua solidão e no seu “desamparo”, para usarmos aqui de um termo heideggeriano. Uma vez que o filósofo já descartou a ideia de Deus e de uma possível “natureza humana” (o homem como algo criado por um ser superior), só resta ao homem permanecer num estado de indefinição. Logo, se o homem não é suscetível de uma definição no momento mesmo em que ele apreende a si mesmo na existência, então ele não é nada a priori. E Sartre dá a chave da questão: o homem apenas será algo a partir daquilo que ele fizer de si mesmo (cf. Silva, 2010).
Politicamente falando sua participação na Resistência não é aceita por todos, e o filósofo Vladimir Jankélévitch o reprova por sua “falta de engajamento político” durante a ocupação alemã, e vê em seus posteriores combates em prol da liberdade uma tentativa de se redimir por esta atitude. Em 1945, ele cria e passa a dirigir junto a Maurice Merleau-Ponty a revista Les Temps Modernes, onde são tratados mensalmente os temas referentes à literatura, filosofia e política. Além das contribuições para a revista, Sartre escreve neste período algumas de suas obras literárias mais importantes. Sempre encarando a literatura como meio de expressão legítima de suas crenças filosóficas e políticas, escreve livros e peças teatrais onde se destaca a peça Huis Clos (1945) e a trilogia: Les Chemins de la liberte, composta pelos romances: L`age de raison (1945), Le Sursis (1947) e Le mort dans l`âme (1949).
 
                         Foto: Capa do filme “Entre Quatro Paredes”, de Jean-Paul Sartre.
O parisiense Sartre foi um dos mais importantes intelectuais do século XX, nos legou O Ser e o Nada; Crítica da razão dialética (filosofia); A náusea, A idade da razão, Sursis; Com a morte na alma (romance); A palavra (autobiografia); As moscas; Entre quatro paredes (teatro); O que é a literatura? (crítica literária), entre outros trabalhos, também era admirador do cinema, como nos conta Simone de Beauvoir, em sua obra Na força da idade (1961): “Havia um modo de expressão que Sartre colocava tão alto quanto a literatura: o cinema. Foi olhando passarem imagens numa tela que teve a revelação da necessidade da arte e descobriu, por contraste, a deplorável contingência das coisas dadas. Pelo conjunto de seus gestos artísticos, ele era mais clássico do que moderno, mas essa predileção situava-o entre os modernos. Meus pais, os seus, todo um vasto meio burguês ainda encaravam o cinema como um divertimento para o povinho”; na Ècole Normale Sartre e seus camaradas “tinham consciência de pertencer a uma vanguarda quando discutiam gravemente as fitas que apreciavam”. Eu estava menos entusiasmado do que ele, mas acompanhava-o assim mesmo com empenho aos cinemas de exclusividade e aos pequenos cinemas de bairro onde ele descobria programas convidativos; não íamos apenas para nos divertir; e sim com a mesma seriedade dos jovens devotos quando entram numa cinemateca.                             
Quando o assunto é o existencialismo no cinema, os críticos se dividem. Há uma corrente de pensamento que acredita que Jean-Paul Sartre influenciou cineastas em suas produções. E há aquelas que preferem crer nas coincidências. E existem na história fatos sociais que comprovam alguma relação do filósofo com a Sétima Arte. Como por exemplo, sua atuação como roteirista. De acordo com o artigo “A Estética Existencialista”, publicado na Enciclopédia de Filosofia de Stanford em 26 de junho de 2009, o filósofo escreveu roteiros durante a Segunda Guerra Mundial, em sua temporada como empregado de uma produtora   “Huis clos”, entre nós, lançado como “Entre Quatro Paredes”, “Les jeux sont faits”, em português: “Os Dados Estão Lançados” e “I Sequestrati di Altona”, em português: “O Condenado de Altona” foram os que resultaram em filmes.
Enfim, o “existencialismo ateu” de Sartre, por sua natureza avessa aos dogmas da igreja e da moral constituída, atraiu muitos grupos que viam na defesa da liberdade e da vida autêntica um endosso à vida desregrada - obviamente, por um erro na compreensão do que há de essencial na concepção de liberdade elaborada pelo filósofo francês. Por razões semelhantes foi vista por muitos como uma filosofia nociva aos valores da sociedade e à manutenção da ordem. Seria uma filosofia contra a humanidade. Esta é uma das razões porque toda a obra de Sartre foi incluída no Index de obras proibidas pela Igreja Católica. Sartre responde a isso na conferência “O existencialismo é um humanismo” em que afirma que o existencialismo não pode ser refúgio para os que procuram o escândalo, a inconsequência e a desordem. O movimento, segundo este texto, não defende o abandono da moral, mas a coloca em seu devido lugar: na responsabilidade individual de cada pessoa. O existencialismo reconhece, assim, a possibilidade de uma moral laica em que os valores humanos existem sem a necessidade da existência de Deus. A moral existencialista pretende que as escolhas morais não sejam determinadas pelo medo da punição divina, mas pela consciência da responsabilidade.
No meio acadêmico, o existencialismo foi criticado por tratar exclusivamente de questões ontológicas, e por sua defesa da autodeterminação. O existencialismo seria uma filosofia excessivamente preocupada com o indivíduo, sem levar em conta os fatores socioeconômicos, culturais e os movimentos históricos coletivos que, segundo o marxismo e o estruturalismo, determinam as escolhas e diminuem a liberdade individual. Em resposta a esta crítica, Sartre fez alterações ao seu sistema, e escreveu “A crítica da razão dialética” como tentativa de compatibilizar o existencialismo ao marxismo. Dos dois tomos planejados, apenas o primeiro foi publicado em vida em 1960. O segundo tomo, inacabado, foi publicado postumamente. Neste texto, afirma que “o marxismo é a filosofia insuperável de nosso tempo”, e admite que enquanto a humanidade estiver limitada por leis de mercado e pela busca da sobrevivência imediata, a liberdade individual não poderia ser totalmente alcançada.
 Não se pode negar sua duradoura influência sobre os mais variados ramos do conhecimento humano. Por ser muito voltado à discussão de aspectos formadores da personalidade humana, o existencialismo exerceu influência na psicologia de Carl Rogers, Fritz Perls, R. D. Laing e Rollo May. Na literatura, influenciou a poesia da Geração Beat, cujos maiores expoentes foram Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs, além dos dramaturgos do chamado Teatro do absurdo. Sartre prova sua relevância até na TV contemporânea, onde o cultuado produtor Joss Whedon costuma inserir o existencialismo em seus projetos: Buffy, a Caça Vampiros, Angel e Firefly - o que, através da repetição descontextualizada dos jargões existencialistas, acaba por contribuir para a incompreensão e reforça preconceitos já existentes. Através de suas contribuições à arte, Sartre conseguiu inserir a filosofia na vida das pessoas comuns. Esta continua a ser sua maior contribuição à cultura mundializada, ou à divisão internacional do trabalho intelectual.
Bibliografia geral consultada:
BRAGA, Ubiracy de Souza, “Notas Sobre o Bicentenário d`A Fenomenologia do Espírito”. Disponível no site: http://www.achegas.net/numero/33/ubiracy_33.pdf; Idem, “Simplesmente: Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir”. Disponível no site: http://cienciasocialceara.blogspot.com.br/2011/09/simplesmente-simone-lucie-ernestine.html; Idem, “Prolegômenos sobre arte, técnica e cinema em Walter Benjamin”. Disponível no site: http://espacoacademico.wordpress.com/2011/11/16/; Idem, “Martin Heidegger e o caráter de apelo da consciência: Be-deuten”. Disponível no site: http://www.oreconcavo.com.br/2012/01/16/martin-heidegger-e-o-carater-de-apelo-da-consciencia-be-deuten/; Idem, “Cinema, Terror & Ilusão!”. Disponível no site: http://httpestudosviquianosblogspotcom.dihitt.com.br/n/opiniao-e-noticias/2012/07/26/; Idem, “Píer Paolo Pasolini: Profeta e mártir do cinema”. Disponível no site: http://www.oreconcavo.com.br/2012/03/25/; SARTRE, Jean-Paul, Lo Imaginario - Psicologia Fenomenologica de la Imaginacion. Buenos Aires: Ibero-Americana, 1948; Idem, L`être et le Néant: essai d`ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 1955; Idem, “O Existencialismo É um Humanismo”. In: Os Pensadores. Vol. XLV. São Paulo: Abril Cultural, 1979; Idem, O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Petrópolis (RJ): Vozes, 1997; Idem, Crítica da Razão Dialética. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2002; Idem, As Palavras. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005; LÉVY, Bernard-Henri, O Século de Sartre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2001; RIBEIRO, Renato Janine, “O Pensador que Engajou a Filosofia na Política”. Revista Cult (Especial Filosofia). São Paulo: Editora Bregantini, novembro 2005, ano 8, número 97, pp. 52-55; COHEN-SOLAL, Annie, Sartre. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM Editores, 2005; Idem, Sartre: uma Biografia. 2ª edição. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008;  BEAUVOIR, Simone de, Na Força da Idade. Vol. I. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1961; pp.43-44; MOUTINHO, Luiz Damon Santos, Sartre: Existencialismo e Liberdade (Coleção Logos). São Paulo: Moderna, 1996; SILVA, Paulo César Gondim, O Conceito de Liberdade em O Ser e O Nada de Jean-Paul Sartre. Dissertação de Mestrado em Filosofia. PPGF; UFRN, 2010; 110 páginas, entre outros.


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* Professor Associado do curso de Ciências Sociais (UECE). Texto escrito e falado no V Seminário do Grupo de Estudos Sartre (GES) - Filosofia da Arte: “Só a Realidade Interessa”, de 12 a 15 de setembro de 2012, Centro de Humanidades (CH/UECE). Agradeço o gentil convite da profa. Eliana Sales Paiva, do curso de Filosofia da UECE e Coordenadora do Grupo de Estudos Sartre no Ceará.