Ubiracy de Souza Braga*
“A vergonha de ser um homem: haverá razão melhor para escrever?” (Deleuze, 1997: 11).
A etnologia demonstra que a compra de mulheres não se pratica exclusiva ou prioritariamente nos chamados “estágios inferiores da evolução cultural”. Ela nunca ocorre, no modo da economia individualista. Ela é submetida a formas e fórmulas estritas, ao respeito aos interesses familiares, a convenções precisas sobre a natureza e o montante do pagamento. Todo o seu desenrolar tem um caráter eminentemente social. Mas a organização dos casamentos que vem à luz com a compra das mulheres representa um imenso progresso diante das condições mais grosseiras do rapto nupcial, ou diante dessas relações sexuais de todo primárias, que não conheciam, sem dúvida, a promiscuidade absoluta, mas ignoravam, muito provavelmente também, a firme referência normativa que a compra socialmente regulada proporciona. Temos aí um fato que “traduz claramente o papel social desse modo de casamento eminentemente pouco individual” (cf. Simmel, 1993: 41).
Como sabemos a evolução da humanidade sempre atravessa estágios em que: a) opressão da individualidade é o ponto de passagem obrigatório de seu livre desabrochar superior, em que a pura exterioridade das condições de vida se torna a escola da interioridade, b) em que a violência da modelagem produz uma acumulação de energia, destinada, em seguida, a gerar toda a especificidade pessoal. Do alto desse ideal é que, c) a individualidade plenamente desenvolvida, tais períodos parecerão, é claro, grosseiros e indignos. Mas, para dizer a verdade, atenta Georg Simmel que, além de semear os germes positivos do progresso vindouro, já é em si uma manifestação do espírito exercendo uma dominação organizadora sobre a matéria-prima das impressões flutuantes, uma aplicação das personalidades especificamente humanas, procurando elas próprias fixar suas normas de vida - do modo mais brutal, exterior ou, mesmo, estúpido que seja -, em vez de recebê-las das simples forças da natureza. A horda “não protege mais a moça e rompe suas relações com ela, porque nenhuma contrapartida foi obtida por sua pessoa”.
Desnecessário dizer que o desvio às normas dominantes de uma sociedade implica “coragem e determinação”. Contudo é frequentemente um processo social para garantir as mudanças políticas que mais tarde vêm a ser consideradas como sendo de interesse geral. Uma sociedade tolerante em relação ao comportamento desviante não sofrerá necessariamente uma ruptura social. O conceito de desvio aplica-se às condutas individuais ou coletivas que transgride as normas de uma dada sociedade, ou de um grupo. Refere-se à ausência ou falha de conformidade face às normas ou obrigações sociais. Um comportamento só pode ser qualificado de desviante por referência à sociedade em que surge. Pode, também, ser visto “como um atentado à ordem social”. Pode, também, ser concebido como o signo de “incapacidade dos grupos e das sociedades em matéria de socialização”. Enfim, é um arquétipo de conformidade por relação a um grupo que não se identifica com o padrão normativo dominante da sociedade global.
“Matei por amor”. A frase saiu dramática, da boca do paulista Raul Fernandes do Amaral Street, o “Doca Street”, e foi dita para a imprensa. Horas depois de um julgamento e sob aplausos, Doca caminhou sem culpa pelo chão de um tribunal na cidade litorânea Cabo Frio (RJ), em 1979. Fora absolvido do assassinato da namorada Ângela Diniz, com três tiros no rosto e um na nuca. Dois anos depois, a promotoria recorreu e o slogan: “Quem Ama Não Mata”, repetido à exaustão por militantes feministas que acompanhavam o segundo julgamento, foi decisivo para a vitória contra a impunidade. Em decisão histórica, transmitida pela tevê, Doca foi para a cadeia. Desde então, os crimes passionais passaram a ser julgados com um olhar supostamente menos machista.
Desejos, da TV Globo, estrelada por Vera Fischer. Na foto, o velório no necrotério.
A história de Doca Street e a do pai de Maitê foram pesquisadas pela procuradora de Justiça do Ministério Público de São Paulo Luiza Nagib Eluf. Em três anos, ela levantou os 14 crimes passionais mais famosos do País e os reúne no livro Paixão no Banco dos Réus. E como ela afirma: “A paixão que denota o crime passional é crônica, obsessiva e nada tem a ver com amor”. Nesse sentido, “pode ter havido amor em algum momento, mas o que mata é o ódio, o ciúme doentio, a possessividade, a sensação de poder em relação à vítima”. Quando não premeditado, o crime passional é cometido por uma pessoa em um estado de extrema emoção e que, segundo o psiquiatra Sérgio Rigonatti, do Instituto de Psiquiatria da USP, pode durar até 24 horas: “O teor da crítica cai, a pessoa perde a referência e age como animal”. Mas a autora do livro enfatiza: “A paixão só serve para explicar o crime, não para perdoar”.
É neste sentido que se articula o histórico dia 13 de outubro de 2008, em que Lindemberg Fernandes Alves, então com 22 anos, invadiu o domicílio de sua ex-namorada, Eloá Cristina Pimentel, de 15 anos, no bairro de Jardim Santo André, na cidade de Santo André (Grande São Paulo), onde ela e colegas realizavam trabalhos escolares. Armado e inconformado com o fim do relacionamento, Lindemberg rendeu com arma de fogo Eloá e três colegas - Nayara Rodrigues da Silva, Victor Lopes de Campos e Iago Vieira de Oliveira, infringindo o Art. 106 do ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8. 069/1990), onde “nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente” (p. 37). Os dois adolescentes logo foram libertados pelo acusado. Nayara, por sua vez, chegou a deixar o cativeiro no dia 14, mas retornou ao apartamento dois dias depois para tentar negociar com Lindemberg. Inicialmente dois reféns foram liberados, restando no interior do apartamento, em poder do raptador, Eloá e sua amiga Nayara Silva. No dia 14, Eduardo Lopes, o advogado do raptador, passou a acompanhar as negociações do cliente com o Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE).
Às 22h50min desse dia, Nayara Rodrigues, 15 anos, amiga de Eloá, foi libertada, mas no dia 15 a policia paulista mandou-a de volta para continuar as negociações. Após mais de 100 horas de “cárcere privado”, policiais do GATE e da Tropa de Choque da Polícia Militar de São Paulo explodiram a porta - alegando, posteriormente, ter ouvido um disparo de arma de fogo no interior do apartamento - e entraram em luta corporal com Lindemberg, que teve tempo de atirar em direção às reféns. Do ponto de vista jurídico, existe diferença entre os termos “rapto” e “sequestro”. Dado que a constituição do corpo de um homem se encontra em constante modificação, é impossível que as mesmas coisas nele provoquem sempre os mesmos apetites e aversões, e muito menos é possível que todos os homens coincidam no desejo de um e mesmo objeto. Mas seja qual for o objeto do apetite ou desejo de qualquer homem,
“esse objeto é aquele a que cada um chama bom; ao objeto de seu ódio e aversão chama mau, e ao de seu desprezo chama vil e indigno. Pois as palavras ´bom`, ´mau` e ´desprezível` são sempre usadas em relação à pessoa que as usa. Não há nada que o seja simples e absolutamente, nem há qualquer regra comum do bem e do mal, que possa ser extraída da natureza dos próprios objetos. Ela só pode ser tirada da pessoa de cada um (quando não há Estado) ou então (num Estado) da pessoa que representa cada um; ou também de um árbitro ou juiz que pessoas discordantes possam instituir por consentimento, concordando que sua sentença seja aceite como regra” (cf. Hobbes, 1979: 33).
No primeiro caso, rapto nupcial consiste em tirar do lar doméstico uma mulher, com “o fim de submetê-la à satisfação de instintos libidinosos, empregando violência, intimidação ou fraude”. Ou, ação ou efeito de arrebatar do domicílio habitual, por violência, qualquer pessoa. No segundo caso, sequestro, refere-se à ação ou efeito de sequestrar. Ou seja, retenção ilegal de pessoa em lugar não destinado à prisão. Ambos são crimes, mas o crime de rapto que estava disposto no art. 219, do Código Penal, foi revogado pela Lei 11.106 de 2005. Além disso, o art. 148, do Código Penal, dispõe sobre o sequestro e cárcere privado: “privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado”. Vale a pena ressaltar que o sequestro difere da extorsão mediante sequestro, tratada no art. 159, do Cód. Penal: “sequestrar pessoa com o fim de obter, para si ou para outrem, qualquer vantagem como condição ou preço de resgate”, como ocorrera, seja no âmbito do “banditismo social”, seja no âmbito da “guerra de guerrilha marxista”.
Do ponto de vista filosófico Georg Simmel (1892; 1898; 1921-1922; 1988; 1993: 42 e ss.) foi, sem dúvida nenhuma, a figura de transição mais importante e mais interessante de toda a filosofia moderna. Por esse motivo, exerceu uma atração sobre todos os verdadeiros talentos filosóficos da nova geração de pensadores. Simmel apresentou sua Soziologie no ano de 1908 e contribuiu decisivamente para a consolidação desta ciência na Alemanha. Nesta obra, ele trata especificamente da sociologia e aprofunda a análise das formas de “sociação”, como a dominação, o conflito, o segredo, os círculos sociais e a pobreza. Ao mesmo tempo, reflete sobre os determinantes quantitativos da vida social, bem como sobre a relação entre a vida grupal e a individualidade. Simmel desenvolveu a “sociologia formal”, ou das “formas sociais”, influenciado pela filosofia kantiana que distinguia “a forma do conteúdo dos objetos de estudo do conhecimento humano”. Tal distinção pretendia tornar possível o entendimento da vida social já que no processo de “sociação” (Vergesellschaftung), termo que cunhou como objeto da sociologia, o “invariante eram as formas em que os indivíduos se agregavam e não os indivíduos em si”.
Para Simmel diante do “conflito” (Kampf) os indivíduos vivem em relações de cooperação, mas também de oposição, portanto, os conflitos são parte mesma da constituição da sociedade. Seriam momentos de crise, um intervalo entre dois momentos de harmonia, vistos, portanto, numa função positiva de superação das divergências. Fundamenta uma episteme em torno da ideia de movimento, da relação, da pluralidade, da inesgotabilidade do conhecimento, de seu caráter construtivista, cuja dimensão central realça o fugidio, o fragmento e o imprevisto. Por isso, seu panteísmo estético, como episteme, no qual se entende que cada ponto, cada fragmento superficial e fugaz é passível de significado estético absoluto, de compreender o sentido total, os traços significativos, do fragmento à totalidade.
O significado sociológico do “conflito” (Kampf), em princípio, nunca foi contestado. Conflito é admitido por causar ou modificar grupos de interesse, unificações, organizações. Por outro lado, pode parecer paradoxal na visão comum se alguém pergunta se independentemente de quaisquer fenômenos que resultam de condenar ou que a acompanha, o conflito é uma forma de “sociação”. À primeira vista, isso soa como uma pergunta retórica. Se todas as interações entre os homens é uma sociação, o conflito, - afinal uma das interações mais vivas, que, além disso, não pode ser exercida por um indivíduo sozinho, - deve certamente ser considerado como “sociação”. E, de fato, os fatores de dissociação - ódio, inveja, necessidade, desejo, - são as causas da condenação, que irrompe por causa deles. Conflito é, portanto, destinado a resolver dualismos divergentes, é uma maneira de conseguir algum tipo de unidade, mesmo que seja através da aniquilação de uma das partes em litígio.
Os escritos de Simmel sobre “vitalismo” ou filosofia de vida, quase no final de sua vida, dimensionam não tanto a tragédia da cultura, mas a ambivalência do sujeito frente à cultura, ou melhor, o conflito da cultura. Entende Simmel que, ainda que as formas culturais na sociedade mercantil avançada tornem difícil ao homem exprimir criatividade, o mesmo não consegue viver sem elas. A comodidade, as construções simbólicas, os sistemas de informação, as novas normas legais, a liberação da sexualidade, dentre outras, são manifestações de uma espécie de outro lado da modernidade. Não obstante, essa percepção sensível de um maior avanço da cultura subjetiva não foi suficiente para alterar o “nó duro” de sua análise em torno da crítica da dimensão de massa dos bens culturais, os quais deixam os homens deprimidos por não poder assimilá-los todos no mesmo momento em que não podem excluí-los, pela fragmentação da existência em razão da separação crescente das esferas objetivadas da vida e a erosão da cultura pessoal em correspondência com o avanço dos multivariados objetos que ganham e exigem conotação cultural.
De outra parte, já é aceito o uso do termo “sequestro com fins libidinosos” para substituir “rapto”. Sequestro e cárcere privado é posto no código penal brasileiro no capítulo dos crimes contra a liberdade individual, no art.148 privar alguém de sua liberdade, mediante sequestro ou cárcere privado é punível com reclusão, de 1 a 3 anos. Podendo ser aumentada de 2 a 5 anos se a vítima é ascendente, descendente ou cônjuge do agente, se o crime é praticado mediante internação da vítima em casa de saúde ou hospital, se a privação da liberdade dura mais de 15 dias. E se resulta à vítima, em razão de maus-tratos ou da natureza da detenção, grave sofrimento físico ou moral a pena é de 2 a 8 anos.
Com o prolongamento do chamado “cárcere privado”, a mídia brasileira foi pouco a pouco ampliando sua atenção ao caso, para não falarmos de resto no mundo globalizado (cf. Reuters Índia, 19.08.2008; Javno.hr, Croácia, 19.08.2008; Trend News, Azerbaijão, 19.08. 2008; International Herald Tribune, 19.08.2008; Folha Online, 19.08.2008 entre outros). Após cerca de dois dias de “cárcere privado”, a Rede TV entrevistou Lindemberg Alves, seguida pela repórter Zelda Mello, da Rede Globo e também pelo repórter da Folha Online. Assim, houve analogamente uma espécie de “espetacularização do crime”, para fazermos referência à Debord (1966), bastante questionada e criticada após o desfecho do caso, que resultou na morte de uma das reféns. O caso mais criticado talvez seja o da apresentadora Sônia Abrão, do programa A Tarde é Sua. Nele, ela conversou ao vivo com Lindemberg Alves e Eloá por telefone, “bloqueando a linha que era utilizada para contato com o negociador”. O ex-integrante do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e sociólogo Rodrigo Pimentel, em entrevista ao portal Terra criticou duramente a cobertura da mídia brasileira argumentando que as emissoras de TV citadas - Rede TV, Rede Record e Rede Globo - foram “irresponsáveis e criminosas” e declarou que o “Ministério Público de São Paulo deveria, inclusive, chamar à responsabilidade, essas emissoras de TV”. Imagens da repercussão jornalística de fora para dentro do Brasil.
A adolescente Nayara deixou o apartamento andando, ferida com um tiro no rosto, enquanto Eloá, carregada em uma maca, foi levada inconsciente para o Centro Hospitalar de Santo André. O raptador, sem ferimentos, foi levado para a delegacia e, depois, para a cadeia pública da cidade. Posteriormente foi encaminhado ao Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Eloá Pimentel, baleada na cabeça e na virilha, não resistiu e veio a falecer por morte cerebral confirmada às 23h30min de sábado (18 de outubro de 2008). O caso também repercutiu no exterior; o jornal espanhol El País destacou a comoção nacional pelo falecimento da jovem Eloá.
Escólio: “No sábado (18/10/2008, Opinião, página 6), o artigo: “Sequestro ou rapto”, do professor Ubiracy de Souza Braga, “escrito antes do desfecho”, faz divagações sociológicas sobre o caso e diz que a mídia, “no afã de capitalizar a notícia, propugna o fim das relações amorosas entre pessoas quando utiliza as expressões como: ‘ex-namorada ‘refém’, ‘sequestro’’”. Ressalta que o jornalismo “‘deveria ter parcimônia (...) para que as partes possam negociar, em nome do amor, sem espetacularização (sic), uma solução livre de preconceitos e palavras (mal) ditas’”. Na terça-feira (21), o jornalista Plínio Bortolotti rebate o sociólogo: ‘A esse entendimento de amor, só resta exclamar: o horror! O horror!’. Enfim, pode-se culpar a mídia por promover espetáculo com uma tragédia, como o professor Ubiracy de Souza Braga o fez, mas dizer que houve ‘rapto’ e não ‘sequestro’, é absurdo. Lindemberg não é um Romeuzinho incompreendido. É um assassino” (cf. Bortolotti, 2008). Plínio Bortolotti é jornalista com mestrado em comunicação social e diretor institucional do Grupo de Comunicação O Povo, onde entrou como repórter em 1997.
Interior do apartamento da família de Eloá, em Santo André (SP), após o desfecho do rapto.
Etnograficamente com uma fala com poucas demonstrações de emoção, Lindemberg negou ter invadido o apartamento de Eloá com intenção de matá-la e tampouco tê-la agredido no tempo em que permaneceram no domicílio. De acordo com o réu, eles haviam reatado o namoro pouco antes do episódio - o que os amigos dela negam -, sendo que ela teria “ficado” com o amigo Victor, que estava no apartamento quando Lindemberg chegou. Apesar admitir ter ficado nervoso com a suposta traição, Lindemberg negou ter agredido os amigos de Eloá e afirmou ter dado oportunidade para que todos, menos a ex-namorada, deixassem o apartamento. “Eu não deixei o apartamento porque estava com medo da polícia. O clima estava muito tenso. Eu ia em uma janela e via polícia. Ia em outra e era a mesma coisa. Eu não entendia nada de polícia. Para mim, era tudo novo”. Segundo ele, a arma usada no crime foi comprada por R$ 700, cerca de 20 dias antes, devido a três ameaças telefônicas de morte. A arma teria sido vendida por um homem que o réu conheceu enquanto praticava atividades físicas em um parque da cidade. Ainda de acordo com o depoimento, Lindemberg só entrou armado no apartamento por essa razão, e não para coagir a vítima: “Eu levava a arma para onde fosse”, afirmou. Lindemberg disse ainda que, em alguns momentos, Eloá ficava “histérica” com a situação. “Quem estava do lado de fora imaginava que eu estava batendo nela”, disse.
A ação da polícia foi amplamente criticada por diversos setores da sociedade, inclusive especialistas em segurança pública. Marcos do Val, instrutor de defesa pessoal do departamento de polícia de Beaumont no estado americano do Texas, foi contatado “pelas lentes” do Fantástico (Rede Globo de Televisão) para comentar sobre a ação policial no caso. Pelas antenas da televisão, o mundo se tornou infinitamente menos secreto. De acordo com ele, a polícia ter permitido que o sequestro se alastrasse por mais de cem horas “foi errado, pois em uma situação passional como essa, quanto mais tempo leva, mais inconstante a pessoa fica”. Ele também afirmou que a polícia “ter permitido a volta de Nayara ao cativeiro foi o maior absurdo da operação”. Finaliza: “em nenhum lugar do mundo já existiu uma situação dessas”. Além disso, também apontou erros no socorro às vítimas e na invasão. Ariel de Castro Alves, secretário-geral do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa (Condepe) criticou a polícia por não ter contatado a mãe de Lindemberg para participar das negociações. De acordo com Alves, “faria mais sentido a mãe de Lindemberg ir ao apartamento negociar a soltura de Eloá do que Nayara, pois o sequestrador tem um envolvimento afetivo maior com a primeira”, sobretudo do ponto de vista da autoridade.
Outro momento polêmico que reitera a “miséria do jornalismo” deu-se quando a jornalista Sônia Abrão da Rede TV entrevistou Lindemberg e Eloá por telefone: “intervindo diretamente nas negociações”. O programa apresentado por Abrão, A Tarde É Sua, que tem média diária de 2 pontos no IBOPE, registrou pico de 5 pontos durante a entrevista com Lindemberg. De acordo com o sociólogo e jornalista Laurindo Leal Filho, que apresenta o programa da TV Câmara Ver TV, sobre ética na televisão, a interferência de uma emissora em um caso como esse, “além de perigosa, é inconstitucional”. Para o advogado Paulo Castelo Branco, ex-Secretário de Segurança do Distrito Federal e membro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), não houve infração nenhuma da jornalista do ponto de vista legal. Para ele, houve uma “incapacidade do Estado de proteger a área e de não permitir acesso de outros ao telefone do sequestrador”. Recentemente, o Ministério Público Federal de São Paulo decidiu mover “ação civil pública contra a apresentadora pela exibição da entrevista”. O MPF afirma que as entrevistas interferiram na atividade policial em curso “e colocaram a vida da adolescente e dos envolvidos na operação em risco e pede indenização por danos morais coletivos de 1,5 milhão de reais”.
A tese que defendemos é que a veiculação das imagens suscitou uma discussão sobre o tratamento dado ao preso na mídia, entendida como: qualquer suporte de difusão de informações (rádio, televisão, imprensa escrita, livro, computador, videocassete, satélite de comunicações etc.) que constitua simultaneamente um “meio de expressão e um intermediário capaz de transmitir uma mensagem a um grupo determinado”. De acordo com o jurista Luís Flávio Gomes, tanto a sociedade quanto a imprensa são complacentes com atos de violência, que legitimam as práticas de violação dos direitos humanos. A consequência disso seria, de acordo com ele, um tipo de “fascistização da sociedade”. Afirmou ainda que as imagens evidenciam que “a sociedade desrespeita a Constituição e desrespeita tudo no momento em que admite esse tipo de violência”.
A declaração de Cabrini: “agora preso um homem nu fragilizado, acuado que em nada lembra as agressividades dos dias de fúria”, pode ser interpretada como uma ironia aos supostos maus-tratos do rapaz, legitimando-os. Enfim, Lindemberg Alves Fernandes, 25, foi condenado na noite de ontem, 16 de fevereiro de 2012, a 98 anos e 10 meses de prisão por ter matado a ex-namorada Eloá Pimetel, 15, e cometido outros 11 crimes, em 2008. Segundo a legislação, ele não pode ficar preso por mais de 30 anos. Como a soma das penas excede este limite, e ele já cumpriu 3 anos e 4 meses elas devem ser unificadas. O criminalista Roberto Parentoni pondera, no entanto, que sempre há espaço na legislação para a defesa recorrer ao juiz de execuções penais para que haja progressão da pena.
__________________
* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Bibliografia geral consultada:
DELEUZE, Gilles, Crítica e Clínica. 1ª edição. São Paulo: Ed. 34, 1997; ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8. 069/1990); BRAGA, Ubiracy de Souza, “´Violência Enquadrada`: Lei Maria da Penha”. Disponível em: http://www.oreconcavo.com.br/2010/07/19/; HOBBES, Thomas, Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. 2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Os Pensadores); SIMMEL, Georg, “Zur Soziologie der Familie”. In: Vossische Zeitung, 21-28 de outubro 1892; Idem, “Die Rolle des Geldes in den Beziehungen der Geschlechter. Fragment aus einer Phisophie des Geldes”. In: Die Zeit, 15.22-29 de janeiro de 1898; Idem, “Fragment über die Libe”. In: Logos, 10/1921-1922 (Textos póstumos); Idem, On Individuality and Social Forms. Chicago: University of Chicago Press, 1971; Idem, La Tragédie de la Culture. Paris: Petite Bibliothèque Rivages, 1988; Idem, Philosophie de l`amour. Paris: Petite Bibliothéque Rivages, 1988; Idem, “O papel do dinheiro nas relações entre os sexos - fragmento de uma filosofia do dinheiro”. In: Filosofia do Amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993; Cf. Reuters Índia, “Garota brasileira morre após ser mantida refém por ex-namorado”, 19. 10. 2008; Javno.hr, Croácia, “Polícia é questionada após caso de refém”, 19. 10. 2008; Trend News, Azerbaijão, “Garota adolescente mantida refém no Brasil é ferida em ação de resgate da política”, 19. 10. 2008; Internacional Herald Tribune, “Adolescente brasileira atingida por tiro de ex-namorado está em coma”, 19. 10. 2008; Folha Online, “Hospital atesta morte cerebral de adolescente e aguarda decisão sobre doação de órgãos”, 19. 10. 2008; MARX, Karl, Libertá di Stampa e Censura. Bologna: Guaraldi Editore, 1970; Idem, Miseria de la Filosofia. Respuesta a la ‘Filosofia de Miseria’ del señor Proudhon. Moscú: Editorial Progreso, 1981; BORTOLOTTI, Plínio, “O sequestro da razão”. In: Jornal O Povo. Online. Fortaleza, 21 de outubro de 2008; DURKHEIM, Émile, Da divisão do trabalho social; As regras do método sociológico; O suicídio; As formas elementares da vida religiosa. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978; DEBORD, Guy, Commentaires sur la Societé du Spetacle. Paris: Gallimard, 1966; DEL PRIORE, Mary. (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000; KOSOVSKI, Ester, Adultério. Rio de Janeiro: Codecri, 1983; LIMA, Lana Lage da Gama, Mulheres, adúlteros e padres: história e moral na sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1987; VAINFAS, Ronaldo, Trópico dos pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997; MISSE, Michel, “Reflexões sobre a investigação brasileira através do inquérito policial”. In: Cadernos Temáticos da Conseg, v. 01, pp. 12-16, 2009; MISSE, Michel (Org.); VARGAS, Joana Domingues (Org.); COSTA, A. T. (Org.) ; RATTON, J. L. (Org.); AZEVEDO, R. G. (Org.), O Inquérito Policial no Brasil. Uma pesquisa empírica. 1ª ed. Rio de Janeiro: Booklink, v. 1., 2010, 476 p. entre outros.
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