quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

A Têmpera de Niccolò di Bernardo dei Machiavelli.


  
                                                                                                 Ubiracy de Souza Braga*
                         “Mesmo as leis mais bem ordenadas são impotentes diante dos costumes”. (Maquiavel)
            A têmpera é a mistura usada em pintura, constituída de gema e clara de ovo, água e pigmentos em pó. Também é obtida misturando-se ingredientes oleosos com uma solução de água e cola. O artista pinta sobre um painel revestido de cola e gesso. Quando a têmpera é “corretamente aplicada” (fortuna), distribuída em finas camadas, “não fica transparente, nem completamente opaca” (virtù). A têmpera (cf. Viroli, 2002; White, 2007; Abrahão, 2009; Pires, 2010; King, 2010) foi aperfeiçoada na Idade Média e utilizada na maioria dos quadros de cavalete, do séc. XIII até o séc. XV. Como sinônimo de têmpera tem-se: a austeridade, o caráter, a consistência, o feitio, a índole, a rijeza e o temperamento, o que reitera “a Itália nos tempos de Maquiavel” (cf. Larivaille, 1979). 
Niccolò di Bernardo dei Machiavelli (1469-1527) viveu a juventude sob o esplendor político da República Florentina durante o governo de Lourenço de Médici (cf. Tenenti, 1973; Larivaille, 1979; Ridolfi, 2003). Após uma adequada educação humanista, ingressou na burocracia do governo republicano de 1498, sendo principalmente empregada como secretário dos Dez de Guerra, a comissão responsável pela condução dos negócios militares e diplomáticos. Instalado em 1310 para investigar a conspiração de Baiamonte Tiepolo, tornou-se talvez o mais famoso de todos os órgãos de Estado do Renascimento.
Nunca foi literalmente um “Conselho de dez”. Era-lhe obrigatoriamente adicionada uma zonta de 20 membros não-votantes. Os conselheiros eram nomeados por um ano, com desqualificação de um ano antes de ser permitida a sua recondução. A responsabilidade do Conselho consistia em proteger o Estado de traição, interna ou externa; além de receberem relatórios regulares sobre os indivíduos, remetidos por reitores e outros funcionários nos territórios venezianos, empregava espiões e, ocasionalmente assassinos etc. Finalmente, até 1582, quando suas funções foram transferidas para o Senado, fiscalizava a produção e uso de artilharia, balas e pólvora.
             Neste cargo, etnograficamente, Maquiavel “observou o comportamento de grandes nomes da época e a partir dessa experiência retirou alguns postulados para sua obra”. O defeito básico dos governantes e estadistas que Maquiavel conheceu consistia na fatídica inflexibilidade diante da mudança das circunstâncias políticas. César Borgia mostrava-se em todos os momentos arrogante em sua autoconfiança. Maximiliano, sempre cauteloso e excessivamente hesitante. Julio II, impetuoso e por demais agitado. Não souberam acomodar sua personalidade às exigências dos tempos. Ao invés disso, tentaram remodelar os tempos segundo sua personalidade. Este julgamento de Maquiavel constitui o cerne da análise da liderança política em Il Principe (1513). 
Depois de servir em Florença durante catorze anos foi afastado do cargo e escreveu suas principais obras. Como renascentista Maquiavel se utilizou de autores e conceitos da Antiguidade clássica de maneira nova. Um dos principais autores foi Tito Lívio (50 a. C.-17 d. C.), além de outros lidos através de traduções latinas, e entre os conceitos apropriados por ele, encontram-se o de virtù, entendido como um traço de caráter que distinguia o homem enérgico, probo, corajoso, até arrojado (mas não imprudente), da sua contraparte convencionalmente virtuosa, tornando-o menos vulnerável às cavilações da “fortuna”. A fortuna é o imprevisível, o acaso, a sorte. A virtù é o saber como atuar de acordo com a necessidade do momento, é a “vontade-força”, qualidade fundamental do Príncipe.
Tal como Maquiavel encerrava O príncipe, com a “vontade-força” na expectativa de que surgisse na Itália dilacerada do seu tempo uma figura magnífica, despida de preconceitos, que lançasse mão de quaisquer recursos, mesmo que inescrupulosos, para unificar o país ameaçado pelos bárbaros, Nietzsche-Zaratustra esperava o mesmo na emergência de um “super-homem” (Übermensch). A singularidade do pensamento ideológico e filosófico de Nietzsche é que foi exposta por meio de um grande poema: “Assim falou Zaratustra” (Also spracht Zarathustra), iniciado em 1883. Nele o filósofo-poeta se apresenta atrás da roupagem do profeta iraniano Zaratustra ou Zoroastro (que viveu ao redor de 600 a. C. e que compôs o Zend-E-Avesta, dividido em cinco Gathas, ou “canções proféticas”), anunciando a boa nova da chegada do super-homem (após ter passado anos no alto de uma montanha, o profeta, exilado numa caverna, para onde havia se retirado a fim de meditar, tinha como companhia apenas uma águia e uma serpente). Dali Zaratustra desce para vaticinar a vinda daquele que irá superar o homem: o super-homem (Übermensch).
Mal entendidos semelhantes associam-se à noção do “grande homem”, a quem Hegel foi o primeiro a discutir filosoficamente. Como o super-homem (Übermensch) de Nietzsche, o herói hegeliano foi mal compreendido e equivocadamente visto “como o protótipo para o homem subumano do fascismo e do nazismo”. Mas Hegel deu origem a esses movimentos de maneira muito mais sutil. Ao escrever sobre o “grande homem”, ele pensava em Napoleão. O que tem a dizer sobre ele é verdadeiro, ainda que descreva apenas um aspecto do fenômeno da personalidade histórica mundial. Existe a enorme dificuldade neste desafio, que fazer justiça quer ao filme de Alfred Hitchcock como a um resumo da noção de Übermensch de Nietzsche. Podemos dizer, no entanto, que esta noção de super-homem é a culminação da sua visão sobre uma nova moralidade. É a experiência de uma “vontade de poder” (Wille zur macht) numa forma elevada, refinada e modelada na vida de um excelente artista criativo, que faz da sua própria vida uma obra de arte. Esta vontade de poder poderá, assim, ser entendida como o impulso inato de todos os seres vivos para adquirirem e expressarem o seu poder. De acordo com Nietzsche, todos são impulsionados por esta “vontade de poder” e a nossa tarefa será expressá-la de forma elevada. Para Nietzsche,
vontade, que não é nenhum poder da subjetividade humana, nada de decisão ou arbítrio de alguma faculdade subjetiva do homem, se refere, antes, à transcendência que caracteriza a inserção, que perfaz o círculo que é vida, que é arché. Assim, vontade da fala da espontaneidade do irromper da vida, de seu livre movimento de auto-exposição ou aparição. Espontaneamente, gratuitamente, vida é acontecimento de vir à luz, fazer-se sensível e, assim, crescer, isto é, agravar-se, intensificar-se. E isso mesmo é poder, à medida que é realização e, então, assim, impõe-se, impera, vige e vale. É força - esta força – concretizada. Vida é vontade de poder, quer dizer, deste nada, a partir do nada, movimento livre (gratuito, sem porquê, sem causa) de, para [zur] aparição e, então, assim, imposição, vigência-poder. Vida, enquanto e como vontade de poder, é a fala do extraordinário, do milagre que o grego experimentou como o elementar de ser-aparecer” (cf. Nietzsche, 2008: 11, grifado no texto). 
Em Maquiavel quando virtù e “fortuna” caminham juntas, o resultado é a vitória - como podemos observar nos exemplos históricos - em caso contrário, a derrota na politica. Exumada pelo interesse humanista na mitologia clássica, essa personificação das forças que desafiam e frustram os esforços humanos foi utilizada, muitas vezes, como um subterfúgio convencional para evitar “a invocação da vontade de Deus” na explicação dos fenômenos que pareciam racionalmente inexplicáveis, quer se tratasse de “um revés no amor ou no campo de batalha”. A ideia de “fortuna” em Maquiavel vem da “deusa romana da sorte” e representa as coisas inevitáveis que acontecem aos seres humanos. Não se pode saber a quem ela vai fazer bens ou males e ela pode tanto levar alguém ao poder como tirá-lo de lá, embora não se manifeste apenas na política. Como sua vontade é desconhecida, não se pode afirmar que ela nunca lhe favorecerá.
Ela (pois tanto o substantivo “fortuna” quanto a personificação, “Fortuna”, eram femininos, refletindo a opinião dos homens e da lei de que as mulheres deviam ser identificadas com a irracionalidade) era invocada mais comumente num contexto político durante a incapacidade da Itália para fazer frente às sucessivas ondas de invasão estrangeira depois de 1494. Em Florença ocorreu um fato estranho. Um frade, de nome Savonarola, que comandava a cidade, previu-lhe uma invasão estrangeira em punição pelo seu gosto pelo luxo e lassidão. Carlos VIII não avançou sobre o lugar e tomou o caminho de Roma, aonde chegou a 31 de dezembro de 1494. Ali ele conseguiu prender o Príncipe Djem, filho do sultão turco Bajazet. Em seguida, a 22 de fevereiro de 1495, tomou posse de Nápoles, e passou a viver em um ambiente festivo em função de seus sucessos.
sou de parecer de que é melhor ser ousado do que prudente, pois a fortuna (oportunidade) é mulher e, para conservá-la submissa, é necessário (...) contrariá-la. Vê-se, que prefere, não raramente, deixar-se vender pelos ousados do que pelos que agem friamente. Por isso é sempre amiga dos jovens, visto terem eles menos respeito e mais ferocidade e subjugarem-na com mais audácia”.
Foi porque Maquiavel percebeu que qualquer conselho positivo para lidar com problemas políticos era suscetível de ser contrariado por uma alusão pessimista à fortuna, que ele resolveu dedicar a esse tema o penúltimo capítulo de Il Principe, livro escrito por Nicolau Maquiavel em 10 de dezembro de 1513, cuja 1ª edição foi publicada postumamente, em 1532. Ele próprio aceitou que a Fortuna era o árbitro de metade das ações dos homens, mas sublinhou que isso não deveria levar ao derrotismo. Em duas memoráveis imagens, comparou a fortuna a um rio cujas águas caudalosas podem ser inofensivamente desviadas por diques e canais de drenagem precavidos, e a uma mulher que, sendo mulher, pode ser domada pelo ardor e a violência.
Chegada a noite, retorno para casa e entro no meu escritório; na porta, dispo a roupa quotidiana, cheia de barro e lodo, visto roupas dignas de rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas antigas cortes dos homens do passado onde, por eles recebido amavelmente, nutro-me daquele alimento que é unicamente meu, para o qual eu nasci; não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões de suas ações. Eles por sua humanidade, me respondem, e eu não sinto durante quatro horas qualquer tédio, esqueço todas as aflições, não temo a pobreza, não me amedronta a morte: eu me integro inteiramente neles. E, porque Dante disse não haver ciência sem que seja retido o que foi apreendido, eu anotei aquilo de que, por sua conversação, fiz capital, e compus um opúsculo De Principatibus, onde me aprofundo o quanto posso nas cogitações deste assunto, discutindo o que é principado, de que espécies são, como são adquiridos, como se mantêm, porque são perdidos. Se alguma vez vos agradou alguma fantasia minha, esta não vos deveria desagradar; e um príncipe, principalmente um príncipe novo, deveria aceitar esse trabalho: por isso eu o dedico à magnificência de Juliano. Filippo Casavecchia o viu e vos poderá relatar mais ou menos como é e das conversas que tive com ele, se bem que frequentemente eu aumente e corrija o texto”.
A crescente sensibilidade da Igreja contra reformista à invocação de uma deusa pagã, em lugar da deferência para com a vontade de Deus, levou a Censura eclesiástica a eliminar as referências à Fortuna de uma obra tão inocente de intenções heréticas quanto Il cortegiano, de Castiglione Baldassare, tendo concluído sua educação formal na periferia da corte de Ludovico Sforza, então famosa acima de todas as outras por seu tom cavalheiresco e sua proteção a homens de saber.  Ou seja,
assegurar-se contra os inimigos, ganhar amigos, vencer por força ou por fraude, fazer-se amar a e temer pelo povo, ser seguido e respeitado pelos soldados, destruir os que podem ou devem causar dano, inovar com propostas novas as instituições antigas, ser severo e agradável, magnânimo e liberal, destruir a milícia infiel e criar uma nova, manter as amizades de reis e príncipes, de modo que lhe devam beneficiar com cortesia ou combater com respeito, não encontrará exemplos mais atuais do que as ações do duque”.
            Ludovico Sforza, o segundo e mais competente filho de Francesco Sforza, foi descrito como “o perfeito tipo de déspota” (Burckhardt), embora Maquiavel o depreciasse por erros de julgamento que o fizeram perder o ducado de Milão. Nenhuma biografia coetânea ou moderna existe dessa enigmática figura, apesar do seu importante papel nas calamitosas invasões francesas da Itália, e como um mecenas. Conhecido como “il Moro”, ou por ser muito moreno ou porque o segundo nome era Mauro, Ludovico recebeu uma educação humanista e fez ele próprio algumas tentativas como escritor (compôs as biografias de homens ilustres, incluindo o próprio pai). Excluído do poder após o assassinato de seu irmão, o duque Galeazzo Maria (1476), Ludovico desafiou sua cunhada Bona de Savóia e usurpou o poder ao filho dela, Giangaleazzo; após a morte deste (1494), ele assumiu o título de duque de Milão, confiante em suas boas relações com o imperador Maximiliano, que tinha casado com sua sobrinha Bianca Maria.    
            No que se refere à Itália, convencionou-se admitir como “cultura renascentista”, o período que vai da segunda geração do século XIV até à segunda ou terceira geração do século XVI. Durante o presente século, foi contestado principalmente com base nos seguintes pontos: (1) Um período histórico autossuficiente é coisa que não existe; (2) A arte e a literatura renascentistas não se desenvolveram tão sistematicamente que possam ser vistas num único e vasto relance de olhos vasariano; (3) Não existe uma verdadeira (e muito menos uniforme) congruência entre “cultura” e “história” durante o período; a cultura “renascentista” chegou tarde a Veneza, ainda mais tarde a Gênova, dois prósperos centros de atividade política e comercial; (4) Definir um período em termos de uma “elite cultural” é desviar a atenção, de um modo inaceitável, dos destinos da sociedade como um todo. Os primeiros estudos a respeito podem ser vistos em Domenico Berti, Giordano Bruno da Nola, sua vita e dottrina (1ª ed. 1868); Vicenzo Spampanato, Vita di Giordano Bruno (1921) de acordo com Hale (1988: 305 e ss).
A obra de Maquiavel relaciona-se in statu nascendi com o tempo no qual foi produzida (cf. Villari, 1920; Caristia, 1951; Sforza, 1951; Ferrara, 1952; Hole, 1963). O método analítico utilizado por ele rompe com a tradição medieval ao fundamentar-se no “empirismo e na análise lógica dos fatos históricos da Roma Antiga”. A primeira de suas missões foi a de convencer um condottiero a continuar recebendo o mesmo soldo. Nesse momento, o governo da República de Florença desejava reaver o controle de Pisa que havia aproveitado a passagem de Carlos VIII para rebelar-se, de forma que, ao realizar essa primeira missão de forma satisfatória, foi enviada em julho de 1499 para negociar com Catarina Sforza, duquesa de Ímola e Forlì a renovação da “condotta” de seu filho Otaviano e para tentar conseguir o auxílio dela com soldados e artilharia para a tomada de Pisa. O governo de Florença contratara o filho da duquesa por 15 mil ducados sabendo-o “mau estrategista militar” e Maquiavel tinha como instruções, diminuir o soldo e conseguir tropas e munição para a retomada de Pisa. Ele conseguiu de forma satisfatória reduzir o soldo a 12 mil ducados e não comprometeu a cidade na defesa de Ímola e Forlì como queria Catarina. A partir dessa primeira missão, escreveu o Discorso fatto al Magistrato dei Dieci sopra le cose di Pisa, de 1499, seu primeiro escrito político.
Pouco depois Luís XII, sucessor de Carlos VIII, conquistou o Ducado de Milão a Ludovico Sforza e, em troca de seu apoio, a República de Florença solicitou o auxílio deste na guerra contra a República de Pisa. Luís XII enviou um exército mercenário que se mostrou indisciplinado e desinteressado pela luta, tendo até mesmo prendido um comissário de Florença. Logo foi necessário enviar representantes à corte francesa em Nevers para relatar a situação e encontrar uma solução sem, entretanto, irritar o rei. Para isso, foram enviados Francisco della Casa e Maquiavel. Pouco antes de ir, seu pai morreu e ficou só com o irmão Totto, que em breve se dedicaria à vida eclesiástica, pois as duas irmãs já haviam se casado.
Aos dois, o rei respondeu que parte da culpa pelo fracasso era de Florença e inclusive insistiu para que o ataque a Pisa continuasse à custa da cidade para reparar a honra do rei. Sem poderes para negociar, Maquiavel limitou-se a aconselhar a Senhoria durante o período em que acompanhou a corte através de França e a solicitar o envio de embaixadores que pudessem tratar destes assuntos com mais autoridade. Aí pôde conhecer um pouco mais sobre uma nação que se havia unificado em torno de um rei, diferentemente da Itália. Depois de mais duas viagens à França anos depois, reuniria suas observações sobre a política francesa em dois textos: “Ritrati delle cose di Francia” e “De natura gallorum” (1510).
De volta à cidade, casou-se com Marietta Corsini, com quem tivera quatro filhos e duas filhas (Bernardo, Ludovico, Piero, Guido, Bartolomea e outra menina morta na primeira infância), mas teve logo que viajar de novo, pois os, partidos políticos de Pistoia outra cidade submetida à Florença, haviam se unido e ameaçavam rebelar-se. Historicamente a maior parte do poder em Florença estava então nas mãos dos guelfos - opositores do poder imperial. Mas o partido em pouco tempo se dividiu em duas facções. A causa foi novamente uma rixa entre famílias, desta vez, importada da cidade de Pistóia. Os Cancellieri eram uma grande família de Pistóia, descendentes de um mesmo pai que tivera, durante sua vida, duas esposas. A família Cancellieri se dividiu quando um membro desajustado da família assassinou o tio e cortou a mão do primo. Os descendentes da primeira esposa dos Cancellieri, que se chamava Bianca, decidiram se apelidar de Bianchi.
Os rivais, que defendiam o jovem assassino, se apelidaram de Neri (negros) em espírito de oposição. A briga tomou conta de Pistóia e a cidade acabou sofrendo intervenção de Florença, que levou presos os líderes dos grupos rivais. Mas as famílias de Florença não demoraram a tomar partido e, por causa de uma briga de rua, a divisão se espalhou pela cidade, dividindo os guelfos em negros e brancos. Depois de criados, os partidos assumiram posições políticas. Os guelfos brancos, moderados, respeitavam o papado, mas se opunham à sua interferência na política da cidade. Já os guelfos negros, mais radicais, defendiam o apoio do papa contra as ambições do imperador, que era apoiado pelos guibelinos. Maquiavel foi de opinião que se deveria dar fim e proibir tais partidos. Além disso, ele foi o primeiro a propor uma ética para a política diferente da ética religiosa, ou seja, a finalidade da política seria a manutenção do Estado. Sua obra Il Principe foi lida pelo cardeal inglês Reginald Pole, se dizendo “horrorizado com a influência que ela teve sobre Thomas Cromwell”.
As fogueiras da Santa Inquisição se tornaram mais ardentes entre os séculos XIV e XV e a loucura passou a ser um dos seus combustíveis prediletos, como é visto magistralmente no filme Giordano Bruno (Direção de Giuliano Montaldo, Itália, 1973) ou também Giordano Bruno (idem, ITA, 1973, 123 min. Original em italiano com legendas em francês) onde o filósofo, astrônomo e matemático Giordano Bruno, desenvolve sua teoria do universo infinito e da multiplicidade dos mundos, em oposição à tradição geocêntrica (a Terra como centro do universo), sendo por isso “queimado vivo por ordem da Inquisição em fevereiro de 1600”. Impressionante reconstituição fílmica da vida de um grande precursor da ciência moderna, autêntica até no detalhe da mordaça de ferro que perfurou a língua de Bruno, para que, no caminho até o cadafalso, não proferisse nenhuma blasfêmia. O filme de Guiliano Montaldo retrata o processo romano, no qual Giordano Bruno recusou qualquer retratação, sendo condenado e queimado vivo no ano de 1600.
Depois de muitos séculos de repressão, particularmente sexual, a Idade Média se transformou numa fábrica de loucos. Já não era mais possível, por exemplo, conter os padres que, reprimidos sexualmente pelo celibato, mantinham encontros com freiras através de esquemas clandestinos que “incluíam túneis subterrâneos ligando conventos entre si”. Cidadãos se organizavam para protegerem suas filhas. Para tanto, enviam prostitutas aos mosteiros. O movimento anti-erótico do medievalismo teve como objeto a figura da mulher, que representava um determinado tipo de estímulo que ameaçavam os guardiões do status quo. Os jesuítas acusaram-no de “ser contra a Igreja” tal como ocorrera a Bruno de Nola ou Nolano e convenceram o Papa Paulo IV a colocá-lo no Index Librorum Prohibitorum em 1559.
Giordano Bruno (1548-1600) foi um teólogo, filósofo, escritor e frade dominicano italiano condenado à morte, por heresia, na fogueira pela Congregação da Sacra, Romana e Universal Inquisição do Santo Ofício - vulgarmente conhecida como Inquisição romana. Porém, como nos referíamos logo em seguida, o Padre Luchesini escreveria um ensaio intitulado: Saggio sulle sciocchezze di Machiavelli. Eduard Meyer, examinando a literatura Elisabeteana do século XVII, contou nada menos que trezentos e noventa e cinco referências feitas a Maquiavel sempre com sentido pejorativo: crime, covardia, brutalidade, etc. “Ele era o causador de todos os males, o autor de todas as desgraças”. Na Inglaterra chegaram a afirmar que o nome dado ao diabo procedia do seu nome, pois, “Maquiavel precisa de um truque para dar seu nome ao nosso velho apelido” (“Nick Machiavel hed neer a trick. Tho gove his name to our old Nick”).
Monumento erguido em 1889 por círculos maçônicos italianos, no local onde Giordano Bruno fora executado. Campo de Fiori, Roma, Itália. Bronze por Ettore Ferrari.
Geralmente, acredita-se que a Inquisição é uma instituição eclesiástica. Mas, na realidade, seu aspecto eclesiástico era mínimo. Quase ninguém fora da instituição sabia que os inquisidores eram nomeados pelo rei. Diretamente a Inquisição funcionou mais ou menos como uma “polícia política” de nossos tempos. A Inquisição funcionou muitas vezes como um tribunal inteiramente politizado. A Inquisição era inimiga dos grupos burgueses e “pré-burgueses” na transição para o capitalismo. E a Inquisição foi decisiva para que na Península Ibérica não amadurecesse uma consciência burguesa, por muito tempo. Foi nesse clima que Nicolau Maquiavel ofertou O Príncipe a Lourenço de Médicis; que Lutero promoveu a Reforma religiosa; que Copérnico demonstrou a Terra em rotação sobre seu eixo e os planetas girando em torno do Sol, não é o centro do universo e que Johannes Weyer publicou, após anos de estudo, o seu De praestigiis daemonum.           
Na França, o huguenote Innocent Gentillet escreveu uma obra na qual o acusou de “ateísmo” e, seus métodos, de “causadores” do Massacre da noite de São Bartolomeu. Esta obra foi muito difundida na Inglaterra, contribuindo para a visão apresentada no teatro do século XVI. No cinema o filme “A Rainha Margot” (“La Reine Margot”. ALE/FRA/ITA/94, direção: Patrice Chéreau), retrata a França em 1572, quando do casamento da católica Marguerite de Valois e o protestante Henri de Navarre, que procurava minimizar as disputas religiosas, mas acaba servindo de estopim para um violento massacre de protestantes conhecido como a “noite de São Bartolomeu”, que teve a conivência do rei da França Carlos IX, irmão de Margot. O filme, que retrata esse trágico acontecimento, é baseado no romance de Alexandre Dumas, A Rainha Margot (1845).
                                           
            Pouco se conhece da biografia de Maquiavel antes de entrar para a vida pública (cf. Ridolfi, 2003; 2012; White, 2007; King, 2010). Ele era o terceiro de quatro filhos de Bernardo e Bartolomea de` Nelli. Sua família era toscana, antiga e empobrecida. Iniciou seus estudos de latim com sete anos e, posteriormente, estudou também o ábaco, bem como os fundamentos da língua grega antiga. Comparada com a de outros humanistas sua educação foi relativamente fraca, principalmente por causa dos poucos recursos materiais e financeiros da família. Não se sabe ao certo o que teria levado à escolha de Maquiavel para a chancelaria em 19 de junho de 1498. Alguns autores afirmam que ele teria trabalhado aí como auxiliar em 1494 ou 1495, hipótese contestada atualmente.
Outros preferem atribuir a sua entrada à escolha e camaradagem de um antigo professor seu, Marcelo Virgilio Adriani, o qual ele teria conhecido em aulas na Universidade Pública de Florença e naquele momento era Secretário da Primeira Chancelaria. Mas Ross King (2010) resgata a imagem de Maquiavel da caricatura, descrevendo em detalhes o vibrante contexto político e social que influenciou seu pensamento, e ressalta a humanidade de um dos mais importantes filósofos políticos da história social e política. Além disso, Maquiavel de Ross King frequenta astrólogos, produz vinho, percorre a Europa a cavalo como diplomata, e é um estudioso apaixonado da Antiguidade - mas, sobretudo, “um observador perspicaz da natureza humana”.
Em 7 de novembro de 1512, Maquiavel foi demitido sob a acusação de ser um dos responsáveis por uma política anti-Médici e grande colaborador do governo anterior. Foi multado em mil florins de ouro e proibido de se retirar da Toscana durante um ano. Para piorar sua situação, no ano seguinte dois jovens, Agostino Capponi e Pietropolo Boscoli, foram presos e acusados de conspirarem contra o governo. Um deles deixou cair involuntariamente uma lista de possíveis adeptos do movimento republicano, entre os quais estava o de Maquiavel, que foi preso e torturado. Para sua sorte, com a morte do papa Júlio (1513) e a eleição de João de Médici, um florentino, como Leão X, todos os suspeitos de conspiração foram anistiados como sinal de regozijo e com eles Maquiavel, depois de passar 22 dias na prisão. Em reconhecida referência:
Num dia de dezembro de 1513, um homem escreve a um amigo. Está no campo, banido. Foi preso e torturado. Mas não se queixa. Conta que passa o dia com os camponeses, gritando, jogando. À noite, porém, troca de roupa. Veste os melhores trajes. Lê os autores antigos e, espanto!, dialoga com eles. Ouve suas opiniões, suas ideias. (Essa passagem é sempre citada, quando se quer explicar a Renascença). Quase no final, informa que gastou algumas semanas escrevendo um livrinho, De principatibus (Dos principados), ´onde me aprofundo tanto quanto posso nas cogitações desse tema...`” (cf. Ribeiro, 2004).
            Apesar do abatimento e do aparente vexame por ter sido supliciado ele não se deprimiu por muito tempo. Como escreveu ao seu amigo, o embaixador Francisco Vettori (carta de 10/12/1513), com quem mantinha ativa correspondência, decidiu-se por abraçar profundamente às letras. Ele frequentara as potências do seu tempo, conhecera monarcas poderosos, arcebispos, cardeais e o próprio papa, além de um número significativo de tiranos e de condottiere, capitães-de-aventura, como se chamavam os chefes mercenários. Vira de perto a ascensão e queda de muitos deles. Como por igual apreciava os letrados, tais como o historiador Francisco Guicciardini, seu amigo, e um dos maiores escritores políticos da sua época, ninguém melhor do que ele para associar a prática à teoria.            
          Depois de passar o dia convivendo com os aldeãos e os frequentadores da taverna, à noite Maquiavel, trajando-se com boas roupas, recolhia-se para a sua biblioteca para “encontrar-se com os grandes” pensadores, isto é, pôr-se a ler os autores clássicos: Tucídides, Cícero, Júlio César, Tácito, Tito Lívio, e tantos outros mais, imaginando dialogar com eles todos. Portanto, sua obra política resultou dessa simbiose entre o empírico a partir da experiência como diplomata e o conhecimento histórico acumulado, a partir da leitura dos livros da política greco-romana. Na construção dele do “cosmo político”, na falta de melhor expressão, Deus estava banido, pois o que ele quis retratar era o “império dos homens”, um cenário mais próximo da selva do que dos espaços divinos.
Libertado, seguiu para uma propriedade em “Sant`Andrea in Percussina” distante 7 km de San Casciano. Foi durante esse ostracismo e inatividade, o qual duraria até sua morte, que ele escreveu suas obras mais conhecidas: “Il Principe” e os “Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio” (1512-1517), em 3 volumes. Foi também nesse período que conheceu vários escritores no Jardim Rucellai, círculo de literatos. Cosimo Rucellai falecera 25 anos antes, em 1519. Maquiavel dedicou os Discorsi... a ele e a Zanobi Buondelmonti, a quem se referirá mais adiante e se aproximou de Francesco Guicciardini apesar de já conhecê-lo há tempos. Entre os escritos desse período estão o poema “Asino d`oro” (1517), a peça “A Mandrágora” (1518), considerada uma obra prima da comédia italiana, e “Novella di Belfagor” (romance, 1515), além de vários tratados histórico-político, poemas e sua correspondência particular (organizada pelos descendentes) como “Dialogo intorno alla nostra língua” (1514), “Andria” (1517), “Discorso sopra il riformare lo stato di Firenze” (1520), “Sommario delle cose della citta di Lucca” (1520), “Discorso delle cose florentine dopo la morte di Lorenzo” (1520), “Clizia”, comédia em prosa (1525), “Frammenti storici” (1525) e outros poemas como “Sonetti”, “Canzoni”, “Ottave”, e “Canti carnascialeschi”.
Em geral seus críticos se basearam em Il Principe, analisando-a isoladamente das demais obras de Maquiavel e sem levar em conta o contexto histórico e social no qual foi produzida. Maquiavel escreve história mais como pensador político do que como historiador. Isto é importante e evidencia sua singularidade como pensador. Não se preocupa tanto com a referência precisa de afirmações contidas nas suas obras, mal comparando, tal como o filósofo Michel Foucault em nossos dias, ainda que tenha ido aos arquivos de Florença - prática incomum na época. Deixa transparecer nas suas obras históricas a defesa de algumas das suas ideias através da narração dos fatos históricos. Ele também acredita que a história se repete, tornando a sua escrita útil como exemplo para que os homens, tentados a agir sempre da mesma maneira, evitassem cometer os mesmos erros. Assim, enquanto alguns dos seus biógrafos atribuem-lhe os fundamentos da escrita moderna da história, outros admitem que ele não possua uma visão crítica o suficiente para poder separar os fatos históricos dos mitos e aceitou como verdade, por exemplo, a fundação mitológica de Roma, outros ainda, de forma vulgar atribuem-lhe uma “concepção dogmática e ingénua da história”, o que dispensa-nos comentários.
                                           
          Edição de 1550 de “O Príncipe” e de “A vida de Castruccio Castracani da Lucca”.
Metodologicamente falando, virtù é justamente a capacidade do indivíduo de controle das ocasiões e acontecimentos, ou seja, da “fortuna”. O político com grande virtù vê justamente na fortuna a possibilidade da construção de uma estratégia para controlá-la e alcançar determinada finalidade, agindo frente a uma determinada circunstancia, percebendo seus limites e explorando as possibilidades perante os mesmos. A virtù está sempre analisando a “fortuna” e, portanto, não existe em abstrato, não existe uma fórmula, ela varia de acordo com a situação determinada. Pois, os fins justificam os meios dentro de uma determinada conjuntura política que sofre influência de outras dimensões como a social, a econômica e a moral e cabe ao político com as suas capacidades de análise e de estratégia achar um meio mediante o qual essa conjuntura para realização de um determinado fim.
No livro O Príncipe, cap. 25. “Quanto pode a fortuna influenciar as coisas humanas e como se pode resistir a ela”, em que Maquiavel explica esses conceitos, ele fala sobre a crença que há em sua época em um “determinismo divino”, o desenvolvimento dos mesmos se opõe a esse determinismo, porém devemos cuidar, pois assim como a fortuna não é determinada e fatalista, mas sim muda de acordo com a conjuntura, a virtù não o simples livre arbítrio, mas sim a escolha certa na hora certa. Os “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, de 1513 a 1521, opõem-se a “O Príncipe” pelo tema, apesar de ambos compartilharem alguns conceitos.
Nos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio, Maquiavel defende a forma de governo republicana com uma constituição mista, de acordo com o modelo da República de Roma Antiga. Defende também a necessidade de uma cultura política sem corrupção, pautada por princípios morais e éticos. Foram pensados como análise e comentário a toda a obra de Tito Lívio, mas permaneceram incompletos, não passando da primeira década. Esta obra surgiu da vontade do autor de comparar as instituições da Antiguidade, em especial às da Roma clássica, com as de Florença no período. Assim, seguindo a obra de Tito Lívio, analisa como surgem, se mantém e se extinguem os Estados. Ficou assim dividido em três partes, estudando na primeira a fundação e a organização, em seguida o enriquecimento e a expansão e por fim sua decadência.
Para o que nos interessa, a ética em Maquiavel se contrapõe à ética cristã herdada por ele da Idade Média. Para a ética cristã, as atitudes dos governantes e os Estados em si estavam subordinados a uma lei superior e a vida humana destinava-se à salvação da alma. Com Maquiavel a finalidade das ações dos governantes passa a ser a manutenção da pátria e o bem geral da comunidade, não o próprio, de forma que uma atitude não pode ser chamada de boa ou má a não ser sob uma perspectiva histórica. Reside aí um ponto de crítica ao pensamento maquiavélico e fundamento de sua atualidade, pois com essa justificativa, o Estado pode praticar todo tipo de violência, seja aos seus cidadãos, seja a outros Estados. Ao mesmo tempo, o julgamento posterior de uma atitude que parecia boa, pode mostrá-la má.
Para ele, a “natureza humana” seria “essencialmente má” e os seres humanos querem obter os máximos ganhos a partir do menor esforço, apenas fazendo o bem quando forçados a isso, contrariando Thomas Hobbes, para quem a “condição da natureza humana e as leis divinas exigem um cumprimento inviolável”, ou, John Locke, “dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem”. De acordo com o conceito aceito pela ciência moderna, “natureza humana” é a parte do comportamento humano que se acredita que seja normal e/ou invariável através de longos períodos de tempo e de contextos culturais dos mais variados. Assim a chamada “natureza humana” também não se alteraria ao longo da história fazendo com que seus contemporâneos agissem da mesma maneira que os antigos romanos e que a história dessa e de outras civilizações servissem de exemplo. Falta-lhe quiçá um senso das mudanças históricas. Como consequência acha inútil imaginar Estados utópicos, visto que nunca antes postos em prática e prefere pensar no real concreto.
Todavia sem querer com isso dizer que os seres humanos ajam sempre de “forma má”, pois isso causaria o fim da sociedade, baseada em um acordo entre os cidadãos. Enfim, ele quer dizer que o governante não pode esperar o melhor dos homens ou que estes ajam segundo o que se espera deles. Talvez isto signifique o seguinte: na Idade Média, o quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto do súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava isso para fazer um bom rei ou um fiel cristão. Maquiavel mostra que o príncipe não está mais submetido - nem protegido - por esse quadro. É essa insegurança que lhe dá liberdade. Ninguém é livre sem ansiedade.
Mais de quatro séculos nos separam da época em que viveu Maquiavel. Muitos leram e comentaram sua obra, mas um número consideravelmente maior de pessoas evoca seu nome ou pelo menos os termos que aí tem sua origem. “Maquiavélico e maquiavelismo” (cf. Bath, 1992; Abrahão, 2009; Nietzsche, 2008: 385 e ss.) são adjetivo e substantivo que estão tanto no discurso erudito, no debate político (cf. King, 2010), quanto na fala do dia-a-dia (cf. Cortina, 2000). Seu uso extrapola o mundo da política e habita sem nenhuma cerimônia o universo das relações privadas. Em qualquer de suas acepções, porém, o “maquiavelismo” está associado à ideia de perfídia, a um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões pejorativas sobreviveram de certa forma, incólumes no tempo e no espaço, apenas alastrando-se do campo luta política para as desavenças dos níveis mais elementares de nosso cotidiano.
Em verdade,
o manuscrito passou inteiramente despercebido durante a vida do seu autor. Publicado por seus filhos em forma de livro anos após a sua morte, a rejeição a O Príncipe logo nasceu e cresceu. Rejeição que marcou a trajetória do livro durante séculos e que tendo o maquiavelismo como centro produziu muita condenação e pouca luz. De modo geral, lido de má-fé, sem método ou simplesmente citado sem ao menos ter sido consultado, O Príncipe transformou-se num símbolo da trapaça, o número um da galeria dos livros malditos” (cf. Alves Filho, 1976; 2009).
Maquiavel venceu, Maquiavel está vivo. Pois nem depois de morto, Maquiavel terá descanso. Foi posto no Index pelo concílio de Trento, o que o levou, desde então a ser objeto de excreção dos moralistas. Realizado de 1545 a 1563, foi o 19º concílio ecuménico. É considerado um dos três concílios fundamentais na Igreja Católica. Foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da fé e a disciplina eclesiástica, no contexto da Reforma da Igreja Católica e a reação à divisão então vivida na Europa devido à Reforma Protestante, razão pela qual é denominado também de Concílio da Contra-Reforma. Os Príncipes mudaram, mas não de alma, gesto, corpo e pensamento. Mudaram a mistura usada em pintura, pois hoje alguns usam batom, mas continuam Príncipes, de alma e coração.
Por fim, resta-nos do ponto de vista da analise comparada a inspiração de Maquiavel sobre a perspectiva do italiano marxista Antônio Gramsci a qual se refere à “dupla perspectiva” na ação política, correspondente à natureza dúplice do Centauro maquiavélico, ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e daquele universal (da “Igreja” e do “Estado”), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia, etc. Não é difícil perceber até que ponto esta proposição é utilizada por A. Gramsci para fundar a relação entre violência e consenso que constrói o conceito de hegemonia, uma das chaves do seu complexo discurso sobre a política.
O primeiro se move na “realidade efetiva”, porque sua atividade não tende a gerar novos equilíbrios, mas a conservá-los. O segundo, representado por Maquiavel, quer, por definição, criar novas relações de força e, portanto, deve ocupar-se do “dever ser”. Mas, do ponto de vista da análise de conjuntura de Antônio Gramsci (cf. 1975; 1991; 2000; 2002), em que propugna uma “revolução cultural”, uma luta ideológica, a questão não deveria ser formulada nestes termos antagônicos: trata-se de analisar se o “dever ser” é um ato arbitrário ou um ato necessário. É certo que o político não deve mover-se só na “realidade efetiva”, mas também no “dever ser” que orienta a ação sobre a mudança da sociedade. Mas haveria duas formas deste “dever ser”: uma, a abstrata e difusa do frade Savonarola, o “profeta desarmado”, e outra, a realista de Maquiavel, nem determinista nem voluntarista, mas definida como interpretação objetiva e como indicadora de linhas de ação, embora não se tenha transformado em realidade imediata.
E A. Gramsci, com a graça da admiração, culmina sua análise com algumas palavras sobre o limite e a estreiteza de Maquiavel que consistem apenas no fato de ter sido ele uma “pessoa privada”, um escritor, e não o chefe de um Estado ou de um exército, que é também uma pessoa singular, mas tem à sua disposição as forças de um Estado ou de um exército, e não somente “exércitos de palavras”. Nem por isso se pode dizer que Maquiavel tenha sido também ele um “profeta desarmado”. Maquiavel metodologicamente, jamais diz que “pensa em”, ou se propõe “ele mesmo”, mudar a realidade concreta, mas visa apenas e singularmente demonstrar como deveriam operar as forças históricas e sociais para se tornarem eficientes, vívidas, depois de mais de quatro séculos que nos separam da época em que viveu Niccolò di Bernardo dei Machiavelli.
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Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

Bibliografia geral consultada:
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