quinta-feira, 8 de março de 2012

Driblar a câmera, não é uma questão somente do crack.


                                                                                                 Ubiracy de Souza Braga*
                              Tudo o que se pensa ou é afeto ou aversão” (Robert Musil).
                Conceptualmente droga “é toda e qualquer substância, natural ou sintética que, introduzida no organismo modifica suas funções”. As drogas naturais são obtidas através de determinadas plantas, de animais e de alguns minerais. Exemplo a cafeína (do café), a nicotina (presente no tabaco), o ópio (na papoula) e o THC - tetrahidrocanabiol (da cannabis). As drogas sintéticas são fabricadas em laboratório, exigindo para isso técnicas especiais. O termo “droga” presta-se a várias interpretações e conteúdos de sentido, mas para o senso comum é uma substância proibida, de uso ilegal e nocivo ao indivíduo, modificando-lhe as funções, as sensações, o humor e o comportamento. As drogas estão classificadas em três categorias: a) as estimulantes, b) os depressores e, c) os “perturbadores das atividades mentais”.
O termo “droga” envolve os analgésicos, estimulantes, alucinógenos, tranquilizantes e barbitúricos, além do álcool e substâncias voláteis. As psicotrópicas são as drogas que tem tropismo e afetam o Sistema Nervoso Central, modificando as atividades psíquicas e o comportamento. Essas drogas podem ser absorvidas de várias formas: por injeção, por inalação, via oral, injeção intravenosa ou aplicada via retal (supositório). O crack é uma droga, geralmente fumada, “feita a partir da mistura de pasta de cocaína com bicarbonato de sódio”. É uma forma “impura de cocaína” e não um subproduto. O nome deriva do verbo “to crack”, que, em inglês, significa “quebrar”, devido aos pequenos estalidos produzidos pelos cristais (“as pedras”) ao serem queimados, como “se quebrassem”. E “cracolândia”, por derivação do crack, “é uma denominação popular” para uma região no centro da cidade de São Paulo, nas imediações avenidas Duque de Caxias, Ipiranga, Rio Branco, Cásper Líbero e à rua Mauá, onde “historicamente se desenvolveu intenso tráfico de drogas e meretrício”. Durante o final da década de 1960, com o surgimento do chamado “cinema marginal”, houve um crescente desenvolvimento da atividade cinematográfica nesta região da cidade.
Etnograficamente falando diversas produtoras e alguns cinemas lá surgiram nesta época. A Boca do Lixo pode ser considerada “o berço do Cinema Marginal”, de diretores como Rogério Sganzerla, que teve como expoente de sua carreira o filme “O Bandido da Luz Vermelha”, de 1968. O diretor, criticado por sua ousadia, concentra em seu primeiro longa-metragem toda a sua radicalidade política. Sganzerla se pretendia “ser livre - e ao mesmo tempo - acadêmico”, o que rendeu certa complexidade artística e intelectual à sua obra. Ozualdo Candeias, de origem pobre, foi militar e caminhoneiro antes de começar sua carreira cinematográfica em 1955, com o curta-metragem Tambau-Cidade dos Milagres, no qual já trazia elementos comuns à sua obra, como a ironia e a provocação.
Sua obra-prima foi A Margem, de 1967, que abriu caminho para o movimento do “cinema marginal”, de nomes como o do próprio Ozualdo, João Silvério Trevisan, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, Andrea Tonacci, entre outros. Em 1968, produziu um dos segmentos do filme Trilogia de Terror, de José Mojica Marins, o Zé do Caixão: O Acordo. Ainda com Mojica, co-dirigu Ritual dos Sádicos, produzido em 1969, mas só liberado pela censura militar em 1982 e Júlio Bressane, um digno representante do cinema marginal brasileiro, que teve coo primícias o fazimento e aprendizado do  cinema como assistente de direção do laureado cineasta Walter Lima Júnior, em que dirigiu Menino de engenho. Em 1967 estreou como diretor com “Cara a Cara”, sendo selecionado para o Festival de Brasília. Em 1970 fundou a Belair Filmes em sociedade com o também cineasta Rogério Sganzerla.
Num depoimento de Caetano Veloso sobre o chamado “cinema novo” temos a seguinte reflexão:
O filme como um todo, no entanto, me pareceu desigual. E me agastava que ele não o fosse menos - era- o mesmo bem mais - do que Deus e o Diabo na Terra do Sol. As lamentações do seu principal personagem - um poeta de esquerda em conflito íntimo por ambicionar, muito além da justiça social, ´o absoluto` - por vezes me soavam francamente subliterárias. Além disso, certos defeitos intoleráveis do cinema brasileiro - as festas grã-finas inconvincentemente encenadas, as figurantes mulheres que são incentivadas pelos diretores a fazer uma deplorável caricatura provinciana de glamour sexual, a incapacidade de contar pelo menos um trecho de história com clareza, mesmo quando a evidente intenção seria essa etc. etc. - continuavam todos lá. Mas, como já tinha sido ocaso com os dois filmes anteriores de Glauber (e, ainda que em menor intensidade, com grande número de produções do Cinema Novo),incessantemente explodiam na tela as sugestões de uma outra visão da vida, do Brasil e do cinema que pareciam obsoletar esse tipo de exigência. E no caso de Terra em transe, o próprio poeta protagonista trazia, envolta em sua retórica, uma visão amarga e realista da política, que contrastava flagrantemente com a ingenuidade de seus companheiros de resistência à ditadura militar recém-instaurada (o filme é o momento do golpe de Estado reconstituído como um pesadelo pela mente do poeta ao morrer)”.
Eles optaram por um modelo de realizar filmes de baixo custo e produção e com isso conseguiram rodar seis longas-metragens em apenas seis meses. Ele chegou a se exilar em Londres, no início dos anos 1970, mas voltou ao Brasil alguns anos depois e fez “um filme atrás do outro”, usando a chanchada e o deboche como suas principais características. Seu penúltimo filme, “Cleópatra”, foi apresentado no Festival de Cinema de Veneza de 2007, “fora da competição”, além de ter sido premiado como melhor filme do 40º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em novembro de 2007. Os filmes ditos marginais, ligados à Boca, eram sempre permeados de muita sexualidade, escracho e esbórnia. Durante a década de 1980, essa produção intensificou o teor sexual e entrou no período que ficou conhecido como a fase da “pornochanchada”. A Boca foi responsável por mais de 700 títulos nesta época. Desde 2005, a prefeitura fechou bares e hotéis ligados ao tráfico de drogas e à prostituição, retirou moradores de rua e aumentou o policiamento para inibir o consumo de drogas no local.
Centenas de imóveis foram declarados de utilidade pública, em uma área de 105 mil metros quadrados, e estão sendo desapropriados. O objetivo do programa é tornar a área atrativa a investimentos privados, abrindo espaços para empresas do setor imobiliário. Em 2007, a Prefeitura de São Paulo lançou um programa denominado “Nova Luz” para promover a reconfiguração e requalificação da área. Entre as medidas propostas, destaca-se a renúncia fiscal referente ao IPTU, visando estimular a reformas de fachadas dos imóveis de valor venal inferior a R$ 300 mil.
Críticos do programa, no entanto, assinalam o seu “caráter higienista”, destacando que a recuperação de edifícios, praças, parques e avenidas não são acompanhadas de ações voltadas aos grupos mais vulneráveis que vivem ou trabalham na área - que estão sendo sumariamente expulsos. O discurso higienista (cf. Reis, 2000), iniciado no final do Segundo Reinado, firmou-se ao longo da Primeira República. Especialmente durante as décadas de 1920 e 1930, a psiquiatria preventiva, que acoplou os princípios de uma “nova ciência” denominada “eugenia” aos seus ideais regeneradores, ganhou ainda maior impulso. Tratava-se de um projeto político autoritário de evolução racial da nação. O eugenismo, uma espécie de prática avançada do darwinismo social, incentivou a administração científica e racional da hereditariedade, por meio de novas políticas sociais interventivas que incluíam, sobretudo, uma deliberada seleção social.
Ipso facto o olhar médico “dividia a população em doentes e sãos, em regeneráveis e não regeneráveis, tratados de formas distintas”. A boa recepção da eugenia nos meios psiquiátricos deveu-se à convicção de médicos e sanitaristas de que a proporção das doenças mentais era mais alta entre as “estirpes inferiores” e de que, concomitantemente, o número de nascimentos entre as “camadas superiores” estava em franco declínio. O caminho para o “abastardamento mental da espécie humana” estava, segundo os psiquiatras, traçado e só poderia ser interrompido pelas ações higienistas e eugênicas a serem aplicadas em todo o corpo social. A partir de tais práticas, seria possível prever, inclusive, o nascimento de um novo tipo de homem, sadio, vigoroso, acima de qualquer tara ou degenerescência. Se o “paraíso bíblico o homem destruiu” com “a eugenia o homem criará o paraíso terrestre”, é o que prometia Riedel repetindo a fórmula de Renato Kehl, papa do eugenismo brasileiro do período (cf. Reis, 2000).
Nestes dias os “sem-teto” são retirados, o trabalho dos catadores de material reciclável é dificultado e os usuários e dependentes de crack (muitos dos quais crianças e adolescentes), impedidos de se reunir no local, são obrigados a perambular pelos bairros vizinhos, em bandos, sem rumo. A imprensa também tem mostrado as dificuldades sofridas por parentes de viciados em crack para tratá-los. Casos extremos, de famílias que não conseguem ajuda no sistema publico de saúde, são cada vez mais comuns. Em 3 de janeiro de 2012 iniciou-se uma operação de combate ao tráfico da região e ajuda aos usuários de crack, chamada de “Operação Centro Legal”. No final do mês, segundo a PM, a Cracolândia havia se espalhado por 27 bairros, como: Barra Funda, nos trilhos da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, Higienópolis, Luz, Campos Elíseos, Santa Cecília e nas proximidades do Elevado Costa e Silva, essas regiões foram chamadas pela mídia de “minicracolândias”. Segundo relatório divulgado no dia 27 de janeiro pelo governo de São Paulo desde o começo da operação 155 usuários foram encaminhados à instituições de recuperação (internações), 191 pessoas foram presas em flagrante, sendo apreendidas aproximadamente 63 toneladas de drogas, sendo 3 de crack.
                              Foto: Eduardo Zidin: “Cracolândia: Ensaio sobre a barbárie” (2012).
                Há décadas, as ruas Vitória e Guaianases, localizadas no centro velho de São Paulo, foram tomadas por traficantes e dependentes de drogas. Formam as duas um pedaço da “Cracolândia” que a administração Kassab insiste em declarar extinta, mas que ressurge a cada noite como uma Fênix incandescente a ofuscar o marketing kassabserrista do Projeto “Nova Luz”. Moradores do local sabem mais do que ninguém o preço desse empurra-empurra entre sombra e luz. São eles que vivenciam diariamente a experiência de uma frente de guerra incrustrada, como tantas outras, na noite de uma cidade que supostamente dorme em paz. São eles também que se arrastam na peregrinação inútil para sensibilizar autoridades insensíveis, em busca de um armistício feito de segurança, assistência social e urbanismo, que lhes devolva algum traço de cidadania noturna.
            Como sobreviventes de uma espécie de “Faixa de Gaza” (cf. Braga, 2006) esquecida pelo noticiário, os “moradores” das ruas Vitória e Guaianases já percorreram todas as etapas do mesmo fracasso que angustia cidadãos asfixiados por conflitos anônimos em algum ponto do fim do mundo: o apelo humanitário do abaixo-assinado; a denúncia e o pedido de socorro ao Ministério Público e a representação junto ao Conselho de Segurança do Centro, ironicamente autobatizado com seu antônimo: “Conseg”... Não, não se consegue. Representantes da prefeitura e da Polícia Militar chegam a zombar de cidadãos crédulos que os procuram:  - “Olha, não queria estar na pele de vocês”; ou então, “é assim mesmo; há 30 anos é assim; vocês vão esperar mais 15 ...”. Uma realidade complexa como essa, a realidade de uma guerra antiga e surda nas entranhas de uma das maiores metrópole do planeta, pediria abordagens jornalísticas abrangentes, corajosas, competentes. Não, não há uma disponível. O enfoque da mídia segue a receita de repisar o drama do crack, com um toque de banalização que inocula a droga do fatalismo na opinião pública.
            Ou seja,
A pauta fatalista inclui a versão requentada pela Globo, cujo foco de quando em vez recai na relação promiscua e violenta entre policiais e usuários. Ato contínuo, a Polícia surge tinindo na Cracolândia como se fosse uma novidade existir ali um parque temático do que há de mais sórdido na aliança entre o capitalismo, a pobreza e a corrupção. A operação higienista, tão fascista quanto inutilmente publicitária, revela o ´torque social` da administração que comanda a cidade há duas gestões seguidas. Nada de novo. A emissora é a mesma, os personagens também, inclusive o teórico nativo do ´higienismo social` que orienta as ações oficiais na área, Andrea Matarazzo, braço-direito do kassabserrismo e introdutor das ´encostas anti-mendigos` nos baixos dos viadutos paulistas. A imprensa cobre a festa em sua homenagem e o faz com indisfarçável isenção, como manda o manual de redação” (cf. Zidin, 2012).
 
                             Foto: Eduardo Zidin: “Cracolândia: Ensaio sobre a barbárie”.
                A folha de coca, como o café, chá e tabaco foram levados para a Europa durante o século XVI, mas ao contrário das outras folhas, a coca não era muito popular. Isso mudou durante o século XIX quando três químicos, respectivamente os alemães Albert Neimann e Friedrich Gaedecke e o italiano Paolo Manteguzza “encontraram uma maneira de extrair a cocaína das folhas de coca”. A cocaína paradoxalmente foi vista com tanta estima como curiosidade, durante as décadas de 1880 e 1890 que homens importantes como: a) o Papa Leão XII, que na sua política externa procedeu às negociações de diversas concordatas, vantajosas para o papado; b) Sigmund Freud, com a revelação do inconsciente, [o que não acede ao pensamento] e que, portanto “não detemos o centro de nossa individualidade”; c) Jules Verne numa época de expansão, exploração e conquista europeia do globo terráqueo, mas também da ideia de progresso científico e tecnológico como conheceu a segunda metade do século XIX.
            Mesmo no universo imaginário individual e coletivo que as enformam, constituem toda uma odisseia geográfica sem excluir qualquer continente, dos polos Norte a Sul, do Ocidente ao Oriente, sem esquecer as profundezas, os mares ou o espaço aéreo cruzado por homens e máquinas, ou ainda last but not least, d) Thomas Edison (1847-1931), conhecido como The Wizard of Menlo Park, que fora um dos primeiros inventores a aplicar os princípios da “produção em massa” ao processo de “invenção científica”. Ele, como Freud ou Verne foi, igualmente, daqueles que aprovaram “as possíveis maravilhas da nova droga”: a cocaína. Durante a década de 1890, a Coca-Cola, que originalmente continha cocaína, ganhou sua fama business ao ser declarado “um tônico terapêutico para nervos fracos e cérebros vagarosos” (sic) e tinha como slogan: “a bebida que alivia exaustão”!
            Para o ex-presidente da República Federativa do Brasil, Fernando Henrique Cardoso,
uma política realmente efetiva de controle do crime e da droga começa pela educação. Educação e saúde. E implica também o envolvimento das famílias. Isso não é assunto que o Estado possa resolver sozinho. Implica, digamos, a ´despreconceitualização` do tema, porque até hoje ele não é discutível em família. Trazê-lo à tona é considerado uma vergonha. Implica repressão de uma maneira mais eficaz. Implica reforma da Justiça e da polícia. Acho que a questão das polícias, a  questão da segurança pública, é central. Tenho a sensação de que, assim como temos um tremendo problema de saúde pública, de gestão da saúde pública, de instituições da saúde pública, de articulação dos vários níveis de governo – União, estados e municípios – e dos setores privado e público em torno da saúde, temos um problema semelhante de segurança pública. Não estamos institucionalmente preparados para discutir segurança pública no mundo de hoje. A reação mais torpe e mais imediata é o esquadrão da morte, em que se criminaliza a segurança, muitas vezes como apoio da sociedade. Vai-se então da impunidade, que é o mais frequente , à criminalização da própria segurança. Acho que a crise das polícias militares, embora provocadas por outras razões – salários, hierarquias, falta de treinamento -, teve a virtude de colocar a questão na mesa” (cf. Toledo, 1998: 145).         
A história social do crack está diretamente relacionada com a da cocaína, droga que surgiu nos anos 1960 e que, na época, era grandemente consumida por grupos de amigos, em um contexto recreativo. No entanto, a cocaína era uma droga cara, apelidada de “a droga dos ricos”. Esse foi o principal motivo para a criação de uma “cocaína” mais acessível. De fato, a partir da década de 1970 começaram a misturar a cocaína com outros produtos e conforme outros métodos. Foi assim que surgiu o crack, “obtido por meio do aquecimento de uma mistura de cocaína, água e bicarbonato de sódio”. Na década de 1980, o crack se tornou grandemente popular, principalmente entre as camadas mais pobres dos Estados Unidos.
            O crack é uma substância que afeta a química do cérebro do usuário: causando euforia, alegria, suprema confiança, perda de apetite, insônia, aumento da energia, um desejo por mais crack, e paranoia potencial (que termina após o uso). O seu efeito inicial é liberar uma grande quantidade de dopamina, uma química natural do cérebro que causa sentimentos de euforia e de prazer. O efeito geralmente dura de 5-10 minutos, após o qual os níveis de tempo de dopamina no cérebro despencam, deixando o usuário se sentindo deprimido. Quando o crack é dissolvido e injetado, a absorção pela corrente sanguínea é tão rápido como a absorção que ocorre quando o crack é fumado, e “sentimentos de euforia pode ser experimentado”.
Uma resposta típica entre os usuários é ter outro hit da droga, no entanto, os níveis de dopamina no cérebro levam muito tempo para se restabelecer, e cada dose recebida em rápida sucessão leva a efeitos cada vez menos intensos. No entanto, uma pessoa pode ficar 3 ou mais dias sem dormir, enquanto sob o efeito do crack. Uso do crack em uma festa, durante o qual a droga é tomada repetidamente e em doses cada vez mais elevadas, leva a um estado de irritabilidade crescente, agitação e paranoia. Isso pode resultar em uma psicose paranoica, em que o indivíduo perde o contato com a realidade e passa a ter alucinações.
Abuso de estimulantes de drogas, principalmente anfetaminas e cocaína, podem levar a parasitose delirante, melhor dizendo, Síndrome aka Ekbom: a crença equivocada de que são infestados de parasitas. Por exemplo, o uso de cocaína em excesso pode levar à formigamento, apelidado de “bugs cocaína” ou “erros de coque”, onde as pessoas afetadas acreditam ter, ou sentir, parasitas rastejando sob a pele. Essas ilusões também estão associados com febre alta ou abstinência do álcool, muitas vezes juntamente com alucinações visuais sobre insetos. Pessoas que vivem essas alucinações podem arranhar-se e causar danos cutâneos graves e sangramento, especialmente quando eles estão delirando.
O uso do crack - e sua potente dependência psíquica - frequentemente leva o usuário que não tem capacidade monetária para bancar o custo do vício à prática de delitos para obter a droga. Os pequenos furtos de dinheiro e de objetos, sobretudo eletrodomésticos, muitas vezes começam em casa. Muitos dependentes acabam vendendo tudo o que têm a disposição, ficando somente com a roupa do corpo. Em alguns casos, podem se prostituir para sustentar o vício. O dependente dificilmente consegue manter uma rotina de trabalho ou de estudos e passa a viver basicamente em busca da droga, não medindo esforços para consegui-la.
Tais sintomas foram mostrados pelo programa Profissão Repórter, que foi “ao ar” pela TV Globo, no dia 16/11/2010. O crack pode causar doenças reumáticas, podendo levar o indivíduo a morte. Embora seja uma droga mais barata que a cocaína, o uso do crack acaba sendo mais dispendioso: o efeito da pedra de crack é mais intenso, mas passa mais depressa, o que leva ao uso compulsivo de várias pedras por dia. O pesquisador Luis Flávio Sapori, do Instituto Minas pela Paz, que realizou a mais aprofundada pesquisa sobre o assunto, financiada pelo CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico aponta que “o crack é sem dúvida um fator de risco para a violência urbana”. Segundo Sapori não há uma política nacional de saúde pública para acolher o dependente químico que queira se tratar. Ao mesmo tempo não há mecanismos para aqueles que necessitariam de uma internação involuntária.
Poucas cidades brasileiras possuem o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e drogas (CAPSAD). Essa modalidade de CAPS possui atendimento ambulatorial e hospital-dia com equipes interdisciplinares cuja função é criar uma rede de atenção aos usuários de álcool e outras drogas. A recuperação não é impossível, mas depende de muitos fatores, como o apoio familiar, da comunidade e a persistência da pessoa (vontade de mudar). Além disso, quanto antes procurada a ajuda, mais provável o sucesso no tratamento. Segundo o médico psiquiatra Marcelo Ribeiro de Araújo, “faz-se necessário a constituição de equipe interdisciplinar experiente e capacitada, capaz de lhes oferecer um atendimento intensivo e adequado às particularidades de cada um deles, contemplando suas reais necessidades de cuidados médicos gerais, de apoio psicológico e familiar, bem como de reinserção social”. Seis vezes mais potente que a cocaína, “o crack tem ação devastadora provocando lesões cerebrais irreversíveis e aumentando os riscos de um derrame cerebral ou de um infarto”.
As “pedras” começaram a ser usadas no ano de 1990 na periferia de São Paulo e, segundo se diz, de início as próprias quadrilhas de traficantes do Rio de Janeiro não permitiam a sua entrada, pois os bandidos temiam que o crack destruísse rapidamente sua fonte de renda: os consumidores. Entretanto, em menos de dois anos a droga alastrou-se por todo o Brasil. Recentes reportagens demonstram que o entorpecente “tornou-se o mais comercializado nas favelas cariocas multiplicando os lucros dos traficantes”. Atualmente, pode-se dizer que há uma verdadeira “epidemia” de consumo do crack no País, atingindo cidades grandes, médias e pequenas. Efetivamente, é o que aponta recente pesquisa da Confederação Nacional de Municípios, amplamente divulgada, segundo a qual o crack é consumido em 98% das cidades brasileiras.
 Alguns consumidores, em especial do sexo feminino, na prostituição de baixo nível, visando somar recursos para manter o próprio vício, utilizam-se da introdução de pequenas porções de crack em cigarros de maconha, no que é chamado de “desirée”, “mesclado”, “craconha” ou “criptonita”, na gíria do meio consumidor e traficante de crack. Esta prática também é utilizada por traficantes, que adicionam uma pequena quantidade de crack à maconha e vendem aos usuários, sem que estes saibam. É uma tática cruel para obter novos viciados. Enfim, embora gere menos renda para o traficante por peso de cocaína produzida, o crack, sendo mais viciante, garante um mercado cativo de consumo. A pressão sobre o tráfico de cocaína (de menor volume e maior valor agregado) para os países ricos tem deslocado o tráfico para o mercado de crack, passível de ser facilmente colocado para populações de baixa renda.

* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).


Bibliografia geral consultada:
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