terça-feira, 3 de abril de 2012

“Ensina-me a viver”: Fantasias amorosas, há 40 anos sobre a morte.

                  
                                                                                  Ubiracy de Souza Braga*
                                           
As transformações da representação social sobre a morte passam despercebidas por serem muito lentas seguidas por longos períodos de estabilidade. O tempo que as separa equivale a várias gerações e ultrapassa a capacidade da memória individual e coletiva. Para traçar um panorama dessas mudanças desde a Idade Média, Phillippe Ariès (2003) se baseou metodologicamente em textos literários, inscrições em túmulos, obras de arte e até diários pessoais. Segundo o historiador, havia no início da Idade Média uma familiaridade com a morte, que era um acontecimento público. Ao pressenti-la, o moribundo se recolhia ao seu quarto, acompanhado por parentes, amigos e vizinhos. O doente cumpria um ritual: “pedia perdão por suas culpas, legava seus bens e esperava a morte chegar”. Não havia um caráter dramático ou gestos de emoção excessivos. O corpo era enterrado nos pátios das igrejas - que também eram palco de festas populares e feiras. Mortos e vivos coexistiam no mesmo espaço.
A partir de 1231 foram proibidos jogos, danças e feiras nos cemitérios: começava a soar incômoda a proximidade entre mortos e vivos. As sepulturas, anônimas até o século XII, passaram a ser identificadas por inscrições, efígies e retratos: era importante preservar a identidade mesmo após a morte. A arte funerária evoluiu muito do século XIV ao XVIII. A partir do século XVIII, para Ariès, a morte tomou um sentido dramático
. Passou a ser encarada “como uma transgressão que roubava o homem de seu cotidiano e sua família”. Inaugurava-se o “culto aos cemitérios”: o luto era exagerado: o personagem principal era então “a família, e não mais o morto”. Não se temia mais a própria morte, mas a do outro, antropologicamente falando. A partir da segunda metade do século XIX, a morte se transformou em tabu: “os parentes do moribundo passaram a tentar poupá-lo, esconder a gravidade do seu estado”.
“Harold & Maude” (“Ensina-me a viver”, 1971), é um filme estadunidense classificado erroneamente no gênero: “comédia”, dirigido por Hal Ashby. Filho da contracultura dos anos 1960, Hal Ashby não está entre os mais conhecidos da “Nova Hollywood”, movimento que ajudou a construir. O roteiro, publicado como novela em 1971, é de Colin Higgins que incorporou à história muitos elementos de mau humor, existencialismo e drama. A história foi encenada algumas vezes na Broadway e foi adaptada para a TV francesa por Jean-Claude Carrière em 1978. O filme foi classificado em 45º lugar pelo American Film Institute na lista das “cem melhores comédias de todos os tempos”. Foi selecionado para preservação pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em 1997. Apesar de não fazer sucesso no lançamento e dividir a crítica da época, com o tempo o filme viria a se tornar bastante cultuado.
 Harold Chasen é um jovem obcecado com a morte. Constantemente prepara falsos suicídios, assiste enterros e dirige um carro funerário. Nas cerimônias que assiste, ele acaba chamando a atenção de Maude, uma mulher de 79 anos de idade e que possui o mesmo gosto por enterros que Harold. Maude se torna uma companhia constante do rapaz que se apaixona por ela e pelo seu modo de vida entusiasmado e despreocupado. A mãe de Harold tenta arrumar namoradas para ele. O tio quer que ele se aliste no exército. Harold apaixonado “pensa apenas em se casar com Maude”. É um drama social e político constitutivo de nossos dias, passados 40 anos. A igreja é contra a sociedade. Para tal instituição ter filhos é a maior alegria e benção que um casal pode receber de Deus. Na Bíblia Sagrada toda vez que Deus deseja abençoar um casal, Ele o presenteia com um filho. As famílias estéreis eram consideradas amaldiçoadas.
Vede, os filhos são um dom de Deus: é uma recompensa o fruto das entranhas. Tais como as flechas nas mãos do guerreiro, assim são os filhos gerados na juventude. Feliz o homem que assim encheu sua aljava: não será confundido quando defender a sua causa contra seus inimigos à porta da cidade” (cf. Salmo 126, 3-5).
Do ponto de vista ideológico, se entendemos que a ideologia é a relação imaginária dos indivíduos com as suas condições reais de existência, nos esquecemos de que Deus nos deu uma missão, desde o princípio quando disse: “Crescei-vos e multiplicai-vos” (Gn. 1, 28). Isso não significa que nós devemos colocar “milhões de filhos” no mundo sem a responsabilidade de educá-los e criá-los. Devemos ser generosos no número de filhos dentro de uma paternidade responsável. Entre nós, no Brasil, a paternidade na adolescência é um tema ainda pouco abordado pela Academia, de Norte a Sul do país. No que se refere à literatura estrangeira sobre o tema através do descritor básico adolescent fatheres, a base de dados PsyLit da American Psyhological Association (APA) ainda não são significativos os artigos e livros que tratam do chamado “pai adolescente”, mas que não trataremos agora.
Para o que nos interessa temos como escopo a questão da “diversidade”, fora do senso comum gay, como já tratamos noutro lugar (cf. Braga, 2004). Note bem: Harold em sua narrativa conta a Maude como ele já “morrera algumas vezes”. Ele descreve um “acidente que sofrera na escola”, quando misturava elementos químicos no laboratório. Houve uma explosão, incêndio e desabamento, mas Harold conseguiu escapar com vida e voltar para casa. Enquanto estava em seu quarto, viu quando dois policiais contaram a sua mãe sobre o incêndio e que ele havia morrido. A mulher desmaia e cai nos braços dos policiais. Nessa parte, Harold chora e entre lágrimas diz que “decidiu que estava melhor morto” (“I decided then I enjoyed being dead”). A história se repete: a mãe de Harold tenta arrumar namoradas para ele e seu tio quer que ele se aliste no exército. Mas Harold pensa apenas em se casar com Maude.                                            
Durante o filme, Harold aparece “morto” cerca de oito vezes, embora ele tenha contado ao psiquiatra (não explicita se freudiano, lacaniano etc.) que simulara sua morte por volta de 15 vezes: “Enforcado” na cena de abertura: Harold se pendura numa corda enquanto sua mãe fala ao telefone. Ela o repreende e continua a conversação. “Degolado”: Sua mãe o encontra com a garganta cortada no banheiro, com sangue espalhado por toda a parede e espelhos. Ela se irrita e o manda para o psiquiatra. “Afogado na piscina”: Harold flutua com o rosto virado para a água, vestido, e não se move enquanto sua mãe passa nadando por ele. A câmera o mostra por baixo e não se notam aparelhos para respiração. “Tiro na cabeça”: Enquanto sua mãe preenche um questionário para um serviço de encontros (respondendo de acordo com suas próprias preferências e não as do rapaz), Harold aponta um revólver para ela. Como a mãe não o nota, ele vira a arma contra a própria cabeça e atira. Sua mãe apenas diz “Harold! Por favor!” e continua a responder o questionário.
Etnograficamente: “Fogo”: Durante o primeiro encontro, Harold coloca fogo em si mesmo, “enquanto a garota o vê aterrorizada pela janela”. Mão cortada: A segunda garota fica assustada quando Harold pega uma machadinha e corta o que seria sua própria mão, obviamente falsa. Sua mãe tenta mandá-lo para o Exército. Seppuku: Quando conhece a terceira garota, Harold pega um punhal cerimonial e “simula um suicídio ritual samurai”. Harakiri é um dos mais intrigantes e fascinantes aspectos do código de honra do samurai: consiste na obrigação ou dever do samurai de suicidar-se em determinadas situações, ou quando julga ter perdido a sua honra. Significa literalmente “corte estomacal”. Esse suicídio ritual também é chamado de seppuku, que “é uma forma mais elegante de se dizer a mesma coisa”.
A garota, que era atriz, percebe a encenação e recita uma linha de Romeu & Julieta, interpretando um suicídio com o punhal e sujando Harold com o sangue da mão dela, que cortara para testar a mola da falsa arma. Enquanto ela está caída e Harold olha para ela sujo de sangue, sua mãe entra na sala e declara indignada: “Harold! Essa foi a última garota!”. Carro: Abalado com a morte de Maude, Harold dirige seu carro até um precipício em alta velocidade. O carro se destroça com a queda, mas Harold não estava mais nele. O filme mostra um relacionamento de um jovem com uma mulher com 79 anos. Uma relação nada convencional. Eles começaram a notar a presença do outro num enterro. Mas começam mesmo a dialogar num velório. Embora pareça locais fúnebres para dai nascer um grande amor. Cada um deles tem o seu motivo para frequentarem esses rituais.
Desnecessário dizer que foi só a partir dos anos 1930 que a medicina mudou a representação social sobre a morte: já não se morre em casa, entre parentes, mas no hospital, sozinho. O filósofo Michel Foucault no livro Histoire de la folie à l’âge classique (1972) procura examinar o novo tipo de configuração que caracteriza a medicina moderna e suas conexões com o surgimento de novas formas de conhecimento e novas práticas institucionais. Parte de um “projeto”, em nosso modo de entender no sentido sartriano, amplo e ambicioso de crítica histórico-filosófica às estruturas políticas e epistemológicas que presidem ao modelo de racionalidade dominante no mundo contemporâneo. Descobre, assim, ao nível da medicina, uma démarche importantíssima para “dar conta”, na falta de melhor expressão, da constituição das ciências humanas e sociais e da instauração do tipo de poder característico das sociedades capitalistas. Os avanços da ciência permitem prolongar a vida ou abreviá-la. Pacientes podem ser condenados a meses ou anos de vida vegetativa, ligados a tubos e aparelhos.
A inquietude a respeito da morte foi sempre objeto de grande reflexão do homem, na incerteza do que haveria para além dela. Esta herança milenar sofreu um rude golpe com a “modernidade e a cultura de fronteira” (cf. Braga, 1996). A sociedade ocidental coetânea, cada vez mais tentada a prolongar a vida, vai se distanciando da morte, não pensando nela, e procura esquecê-la, in partibus infidelium como ocorre com a escritora Anne Rice autora de: “Entrevista com o vampiro”. Em seus livros ela invariavelmente apresenta seus vampiros como indivíduos com suas paixões, teorias, sentimentos, defeitos e qualidades como os seres humanos mas com a diferença de lutarem pela sua sobrevivência através do sangue de suas vítimas e sua própria existência, que para alguns deles, é um fardo a ser carregado através das décadas, séculos e até milênios.
Contudo, com o acentuar do laicismo, afirma-se cada vez mais que “após a morte nada há mais”, o que modifica o comportamento humano e incentiva cada vez mais a viver a vida, a gozar os prazeres dos sentidos corporais. Não tenho competência para tratar tal tema, mas sem deixar de admirar aqueles que, como dizia o bravo filósofo comunista Karl Marx, no Prefácio da Edição Francesa, escrita em 18  de março de 1872 no exílio em Londres em1872: “Não há entrada já aberta para a ciência e só aqueles que não temem a fadiga de galgar suas escarpas  abruptas é que têm a chance de chegar a seus cimos luminosos”.  A postura do homem perante a morte nem sempre foi assim, muito em especial na Idade Média (cf. Àries, 2003). Com o advento da religião cristã, ao princípio influenciado pelo neoplatonismo de Santo Agostinho (1988; 1999; 2005), o “mundo sensível” era apenas considerado uma sombra, um caminho para se passar do “sensível ao inteligível, da sombra para a luz” (cf. Platão, 1977).
Em vez de procurarem na Natureza o seu próprio fundamento, afirmavam “que o mundo foi criado num ato de amor, e que esse amor deveria orientar os espíritos de volta para Deus, salvando-os do Inferno”. O chamado “paradoxo de consequências não intencionais”, atribuído a Weber pelo sociólogo americano Ch. Wright Mills, é a marca principal do filme. Afinal, a abordagem da vida e da morte é feita de uma maneira distinta e não diferente, “apresentando comicamente o drama psicológico através do relacionamento entre gerações normalmente conflitantes”. O resultado é um legítimo “cult movie” cinematográfico, completamente atemporal. Maude é uma senhora que possui toda a bagagem de vida nas costas. Além disso, ela tem uma disposição para certas façanhas na vida. O seu principal objetivo agora é preocupar-se em estabelecer uma forte relação com o jovem Harold - de apenas 20 anos - e, resgatá-lo para a vida.
             
          Foto: O enlace amoroso do beijo entre um rapaz de 20 anos e uma mulher aos 79 anos.
                O centro da trama está neste relacionamento entre gerações tão distantes e com os papéis aparentemente trocados. Vemos a amizade dos dois crescer à medida que se encontram, mesmo sendo contrastantes há uma troca de lições, aos poucos a amizade vai sendo transformada em amor. Talvez este seja o elemento polêmico. Não é aceitável em nossa sociedade este tipo específico de relacionamento, muito menos em um filme. Sempre o esperado é um casal jovem, bonito e “normal”. Há cenas que com certeza chocaram a sociedade da época, mesmo estando em um momento revolucionário do ponto de vista do afeto político.
É durante um dos encontros que Harold revela o motivo de sua predileção, ele conta sobre uma explosão do laboratório de química em seu colégio, mas do qual conseguiu escapar. Mais tarde, já em casa, ele vê o momento em que policiais contam à Sra. Chansen sobre a morte do seu filho, Harold vê sua mãe desmaiar nos braços dos policiais e desse momento em diante decide que prefere estar morto. Temos aí uma cena muito bonita e profunda, capaz de aproximar o telespectador e colocá-lo em contato com as angústias do jovem, quem sabe até começar a compreendê-lo. Outro aspecto interessante é a excentricidade dos encontros, e o contraste entre a alegria do momento e o ambiente em que ambos se encontram. Ao aprender a ver a vida com outros olhos o protagonista percebe ter encontrado a sua noiva. Decidindo então se casar com Maude. A ideia logo é rejeitada por todos, e preconceituosos, que munidos de argumentos freudianos tentam dissuadi-lo de tamanha loucura, é claro, sem sucesso. A história encontra um caminho interessante “quando Maude afirma ser 80 anos a idade perfeita para deixar a vida” (cf. Freud, 1972).  Preconceituosos, que para Arendt, admite a seguinte explicação:
a palavra ´juízo` tem dois significados que se devem distinguir com clareza, mas que se confundem sempre que falamos. Juízo significa, primeiramente, organização e subsunção do individual e particular  ao geral e universal, procedendo-se então a uma avaliação ordenada com a aplicação de parâmetros pelos quais se identifica o concreto e de acordo com decisões. Por trás de todos esses juízos há um prejulgamento, um preconceito. Somente o caso individual é julgado, não o próprio parâmetro ou a questão de ele ser ou não uma medida adequada do objeto que está sendo medido. Num dado momento, emitiu-se um juízo sobre o parâmetro, mas agora esse juízo foi adotado, tornando-se, por assim dizer, um meio para se emitirem futuros juízos. Mas juízo pode significar algo totalmente diferente e sempre significa de fato quando nos confrontamos com algo que nunca vimos e para o que não temos nenhum parâmetro à disposição. Esse juízo que não conhece parâmetro só pode recorrer à evidência do que está sendo julgado, e seu único pré-requisito é a faculdade de julgar, o que tem muito mais a ver com a capacidade de discernir do que com a capacidade de organizar e subordinar. Tais juízos sem parâmetros nos são bastante familiares quando se trata de questões de estética e gosto, que, como observou Kant, não se podem ´discutir`, mas de que se pode, seguramente, discordar e concordar. Na nossa vida cotidiana isso se verifica sempre que dizemos, em face de uma situação desconhecida, que fulano ou beltrano fez um juízo correto ou equivocado” (Arendt, 2009: 154-155). 
Felizmente o filme foi um fracasso de bilheteria, ipso facto obteve ótima crítica analítica e a polêmica gerada não barrou o poder influenciador do trabalho do diretor Hal Ashby (cf. Braga, 2012). A trilha sonora é assinada por Cat Stevens e possui alguns toques de música clássica. Stephen Demetre Georgiou (Londres, 21 de Julho de 1948), anteriormente conhecido pelo nome artístico de Cat Stevens e agora chamado Yusuf Islam é um cantor e compositor britânico. Seu pai é de origem greco-cipriota e sua mãe de origem sueca. Vendeu 40 milhões de álbuns, principalmente entre as décadas de 1960 e 1970. Em 1971, escreveu uma música para o filme Harold and Maude. No filme o que fica dele é a riqueza trazida pela excentricidade, seja dos personagens ou simplesmente da trama em si. Ensina-me a viver é cativante e atemporal, algo capaz de fazer-nos ampliar os horizontes e modo como enxergamos nosso cotidiano.
A “Academia de Artes e Ciências Cinematográficas”, em inglês: Academy of Motion Picture Arts and Sciences - AMPAS, ou simplesmente, Academy, “é uma organização profissional honorária dedicada ao desenvolvimento da arte e ciência do cinema”, cujo conjunto dos indivíduos vive sob as mesmas normas e relações entre eles. Foi fundada em 11 de maio de 1927, na Califórnia, Estados Unidos da América. É composta por mais de seis mil membros. Naturalmente a maior parte de seus membros é norte-americana, mas a “filiação é aberta a cineastas qualificados de todo o mundo”. No ano de 2004 a Academia possuía em seu quadro cineastas de 36 países. É conhecida no mundo pelo seu prêmio anual, Academy Awards, conhecido informalmente como Óscar. Há também o prêmio para estudantes universitários, o Student Academy Awards, que “premia cineastas graduandos e pós-graduandos”. O atual presidente da Academia é Sid Ganis.
O termo Kulturindustrie foi cunhado pelo filósofo e sociólogo alemães Theodor Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973), a fim de designar a situação da arte na sociedade capitalista industrial. Membros da Escola de Frankfurt, os dois filósofos alemães empregaram o termo pela primeira vez no capítulo “O iluminismo como mistificação das massas” no ensaio: Dialética do Esclarecimento, escrita em 1942, mas publicada somente em 1947. Para ambos “a autonomia e poder crítico das obras artísticas derivariam de sua oposição à sociedade”. E, sobretudo o fato de que o valor contestatório dessas obras poderia não mais ser possível, já que provou “ser facilmente assimilável pelo mundo comercial”. Adorno e Horkheimer afirmavam que a “máquina capitalista” de reprodução e distribuição da cultura estaria apagando aos poucos tanto a “arte erudita” quanto a “arte popular”. Isso estaria acontecendo porque o valor crítico dessas duas formas artísticas é neutralizado por não permitir a participação intelectual dos seus espectadores. A arte seria tratada simplesmente como objeto de mercadoria, estando sujeita as leis de oferta e procura do mercado enquanto tal.
A mãe de Harold é uma personagem irreal e incrivelmente divertida na maneira de lidar com as sucessivas aparentes mortes do filho. A cena de abertura é hilariante, quando ela entra na sala e, com uma indiferença perturbadora, ignora o filho que jazia suspenso no ar, enforcado, fazendo o seu telefonema sem alterar a postura. Ela já conhecia a arte do filho. Ignorá-lo era a atitude mais frequente da mãe que, contudo, não declinava à sua apetência de se imiscuir na vida dele. Primeiro, chega à conclusão de que Harold necessitava de auxílio psiquiatra; depois entende que estava na altura de modificar certos comportamentos (arranjar uma noiva através de uma empresa especializada nesse tipo de eventos; substituir o automóvel; procurar a ajuda do tio, sargento do exército, para encaminhá-lo na vida militar...). Indo ao psiquiatra, Harold deita-se no divã como um morto no seu caixão, a ouvir as palavras inconsequentes do especialista. As candidatas a noiva foram sucessivamente “eliminadas” depois de assistirem às exibições macabras de Harold para conquistá-las (a primeira assiste, histérica, à incineração de Harold; a segunda testemunha a amputação de uma mão com um cutelo; a terceira é espectadora de um haraquiri).
O Jaguar desportivo que a mãe lhe ofereceu para substituir o carro fúnebre, rapidamente se converteu num desportivo Jaguar lúgubre. A solução da carreira militar ficou comprometida após a encenação com a cúmplice, Maude, de uma peça em que ele demonstrava perante o tio todo o seu desejo entusiasta de combater para poder dar largas à sua veia de carrasco inquisitorial. O tio assustou-se com tanta dedicação. Mas, falta falar de Maude... Maude é uma velha senhora de 79 anos que, ao contrário de Harold, nutria uma paixão sem limites pela vida. Para Maude, o ciclo da vida para se completar necessitava dessa derradeira etapa que era a morte. Uma vida vivida na sua plenitude não podia temer esse último repouso. Para ela, a morte era encarada com a alegria natural de quem já gozou o máximo. É esta alegria que ela vai transmitir a Harold, o desejo de viver, de ganhar asas e aproveitar a curta passagem por este mundo. Estas duas excêntricas personagens vão acabar por cimentar uma forte amizade e enamoramento. Maude ensina a Harold a ver a vida através dos seus olhos apaixonados e ele acaba por descobrir que a amava: à vida e a Maude!
Descobre que encontrara a noiva que tanto procurara e decide enfrentar os comentários inflamados da mãe, do tio militar, do padre e do psiquiatra que, com as suas teorias Freudianas, tentava explicar as razões de tamanha aberração. No dia em que completava 80 anos, Maude decide concretizar o que um dia se propusera: a vida tem beleza enquanto há energia para desfrutá-la; 80 anos era uma bonita idade para completar em glória esta aventura. Tomou comprimidos suficientes para não voltar a acordar e partiu. Harold guia o carro descontrolado em direção a um precipício. Um carro num mergulho mortal cai com estrondo pelas encostas escarpadas... Tudo é muito bonito neste filme: a suavidade e a ironia esperta com que o tema é tratado. O charme de um filme “retrô”, com um figurino lindíssimo que acompanha o tema e a personalidade dos personagens. As cores em Maude e na sua casa; e a figura longilínea de Harold, vestido de preto contrastando com paredes brancas são deveras imagens muito marcantes. E um detalhe muito bonito é que Harold, enquanto muda atitude diante da vida, vai clareando as cores de sua roupa. E o clima em volta dele também. De chuva a sol.
Enfim, no teatro o espetáculo, estrelado por Glória Menezes e Arlindo Lopes (2011) nos papéis principais, conta a história de Harold, jovem de quase vinte anos obcecado pela morte, como vemos e, Maude, espirituosa senhora de quase oitenta anos, que vivem uma inesperada história de amor. A octogenária positiva e cheia de alegria ensina ao garoto sensível, tiranizado pela mãe, os prazeres da vida e da liberdade. O improvável romance já emocionou mais de 350 mil espectadores, em 27 cidades do Brasil, nestes quatro anos em que esteve em cartaz. A adaptação teatral do filme “Harold and Maude”, de Coling Higgins, traduzida por Millôr Fernandes (cf. Braga, 2012) e dirigida por João Falcão, conta ainda com a atuação de Ilana Kaplan, Antonio Fragoso e Elisa Pinheiro. Elogiada por vários artistas de grande talento, como o ator Marcos Caruso, a peça tem provocado grande comoção na plateia, que vai do riso à... lágrima.
1971. O ano em que Alan J. Pakula inventou o cinema de Brian DePalma. Seu Klute - o Passado Condena se apresentava como um thriller sexy e doentio, trazendo um homem comum lidando com um psicopata misterioso, ao mesmo tempo protegendo e sendo manipulado por uma prostituta atraente e inteligente. Gravadores e escutas têm seus usos exibidos com riqueza de detalhes técnicos e proximidade quase pornográfica. Assassinatos brutais são registrados de alguma maneira bizarra. Nova York é retratada como uma cidade suja, perigosa, escura. Não por acaso, soa como um DePalma de boa safra, como Um Tiro na Noite (1981), Vestida para Matar (1980) ou Femme Fatale (2002). É certo que Klute influenciou muito DePalma - e isso só faz enriquecer mais um pouco a bela experiência que é curtir o filme de Pakula.
Várias perdas importantes para o mundo do cinema naquela década. Só durante os últimos 12 meses, perdemos de grandes diretores - como Blake Edwards - a astros como Tony Curtis. Em seguida foi a vez de Sidney Lumet. Este foi um dos grandes diretores dos anos 1970 - a última “era de ouro” de Hollywood, época que ficou com uma forte marca autoral. No entanto, sempre foi tratado como um “diretor profissional”, ao invés de um “autor” - rótulo reservado para Scorsese, DePalma, Kubrick etc. Uma bobagem. Lumet é responsável direto pela “cara” de anos 1970: “um cinema feito nas ruas, com sua sujeira e sua urgência, sempre com uma pegada meio desiludida, de homem honesto lutando contra o sistema”. É dele, por exemplo, a obra-prima Um Dia de Cão, com Al Pacino. O filme, dirigido por Sidney Lumet, traz Al Pacino como Frank Serpico, “o policial dos sonhos dos liberais”: um cara normal, fazendo seu trabalho e, que coisa!, incorruptível. Em Nova York, na década de 1970, bem antes do “tolerância zero” - a cidade era um lixo. Como é um cara normal, e como estamos em 1973, ele anda barbudo e vestido feito um hippie, o que faz com que tenha mais facilidade para arrumar umas mulheres e fazer amigos, mas também faz com que seja visto como uma excrecência por seus colegas e superiores. Trabalhando à paisana, começa a ter sucesso nas suas missões de deter traficantes e outros bandidos.
Se fosse hoje, David Beckham torceria o nariz. A patrulha politicamente correta acusaria o roteiro de misoginia, fascismo, cinismo. A Academia ignoraria o filme, que mofaria na prateleira de comédias da locadora sobrevivente do seu bairro. Mas, felizmente, A Última Missão, do grande Hal Ashby, foi lançado em 1973, foi indicado para três Óscares e fez sucesso. E é um deleite poder reviver, em plena era de astros de futebol com sobrancelha feita, uma jornada de machos em estado bruto: brigas, bebedeiras, visitas à casa de tolerância, problemas com a lei - e, claro, as altas questões da abordagem entre marmanjos. Um filme “de homem pra homem, todos orgulhosos de suas barrigas de cerveja e do seu vocabulário de estádio de futebol, sem concessões a um metrossexualismo que nem existia”. A tal missão do título é dada a dois jovens oficiais da Marinha: o “porra-louca” Buddusky (que vira simplesmente “Badass”) e o disciplinado Mulhall (que vira simplesmente “Mule”) são escalados para escoltar um soldado à prisão. O meliante não passa de um moleque crescido – é inseguro, tímido, passivo - e atende pelo nome de Meadows. Seu crime: “ter roubado 40 dólares da caixinha de doações para uma instituição de caridade”.
Para sermos breves, a camada “metrossexualidade” ou o “metrossexualismo”, logo o metrossexual: é um termo originado nos finais dos anos 1990, pela junção das palavras “metropolitano e sexual”, sendo uma gíria “para um homem urbano excessivamente preocupado com a aparência, gastando grande parte do seu tempo e dinheiro em cosméticos, acessórios, roupas e tem suas condutas pautadas pela moda e as ´tendências` de cada estação”. Foi usado pela primeira vez em 1994, pelo jornalista britânico Mark Simpson e foi aproveitado pelas revistas masculinas britânicas e norte-americanas para fazerem desta definição o seu público-alvo. Depois da sua utilização ter decrescido nos EUA, o termo foi reintroduzido em 2000 a par da diminuição dos tabus relativos à cultura gay e com a qual este termo era frequentemente confundido.
 Mas só em 2002 é que o termo se popularizou. Tudo começou com um novo artigo de Mark Simpson, onde afirma que um exemplo conhecido de alguém que se encaixa no perfil do “metrossexual” é David Beckham, atleta do Los Angeles Galaxy, que “gosta de passar o dia nas compras, arranjar as unhas, ir ao cabeleireiro ou cuidar do corpo”. Após a publicação de tal artigo, a firma Euro RCSG Worldwide adoptou-o numa pesquisa de mercado e o jornal New York Times deu uma grande destaque à “metrossexualidade”, difundindo amplamente o termo. Os chamados “metrossexuais” são conhecidos por não viverem sem “a sua marca predileta de hidratante para a pele, apreciarem um bom vinho, sonharem com o último modelo de carro desportivo e gostarem de comprar peças de design. Estes seres vaidosos estão geralmente bem colocados profissionalmente”.
O filme redescoberto daquela semana foi Nashville, um dos filmes mais emblemáticos dos anos 1970. Dirigido por Robert Altman, pode ser considerado a pedra fundamental, o marco zero do cinema “independente americano”. Por dois grandes motivos: 1) foi um fracasso comercial e praticamente jogou no buraco a carreira de diretor “contratável” de Altman (a partir dali, era ele sozinho contra o mundo); e 2) foi o primeiro filme sem protagonistas ou trama evidentes - quase vinte anos depois, o seu Short Cuts e, logo depois, Pulp Fiction, liderariam a série de filmes “adultos” que marcariam a era Miramax.
Nashville, com seus 24 personagens principais e suas “mini-tramas” inacabadas, é costurado pelo cenário da música country da cidade no Tennessee, com seus tipos excêntricos, bregas e ufanistas, ao mesmo tempo em que se constrói um “showmício” de um candidato a senador - um assessor passeia pelo elenco do filme, recrutando artistas para o evento. Como resultado, temos um retrato da cultura da Deep America, com seu direitismo cristão fundamentalista - mas também “de sua ingenuidade humana, com profundas crenças no seu trabalho e no orgulho por sua terra”. No final, essa equação escancara seu desequilíbrio, fechando um filme sensacional. Apesar do fracasso nas bilheterias, Hollywood foi gentil com Nashville e o indicou para vários Oscars - entre eles, filme e direção (para Altman, que foi esnobado) e atrizes coadjuvantes (Lily Tomlin, cativante como a mãe retraída de dois filhos surdos, e Ronee Blakley, como a mais famosa - e problemática - cantora local).
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Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências junto a Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor Associado da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).


Bibliografia geral consultada:
NB: O beijo (Der Kuss) é um quadro do pintor austríaco Gustav Klimt. Executada em óleo sobre tela, medindo 180x180 centímetros, entre 1907 e 1908, é uma das obras mais conhecidas do Klimt, graças a um elevado número de reproduções; BRAGA, Ubiracy de Souza, “Modernidades e Cultura de Fronteira”. Conferência escrita e falada na 4ª Reunião Especial da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Campus da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS, BA, 24 a 28 de novembro de 1996; Idem, “Hannah Arendt: No limiar entre a ética, a política e a rememoração”.http://cienciasocialceara.blogspot.com.br/2011/12/hannah-arendt-no-limiar-entre-etica.html; Idem, “Millôr Fernandes: história, humor & política”. Disponível em: http://www.oreconcavo.com.br/2012/03/30/millor-fernandes-historia-humor-politica-por-ubiracy-de-souza-braga/; FREUD, Sigmund, Obras Completas. Madrid: Editorial Biblioteca Neuva, 1972, 3 Volumes;  FOUCAULT, Michel, Histoire de la folie à l’âge classique. Paris, Éditions Gallimard, 1972; ELIAS, Norbert, A Solidão dos Moribundos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001; ÀRIES, Phillippe, História da Morte no Ocidente - da Idade Média aos Nossos Dias. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003; ALBERONI, Francesco, O Erotismo, Fantasias e Realidades do Amor e da Sedução. São Paulo: Circulo do Livro, 1986; ANONIMO, Las Mil y Una Noches. Textos Íntegros. 3ª Edición. Madri/Barcelona: Ediciones 29, 1985, Tomo I-II; KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro (org.), Imagens & Ciências Sociais. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 1998; CLASTRES, Pierre, A sociedade contra o Estado. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988; AQUINO, Tomás de, Summa Theologica. 2ª edição. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1980-1981: AGOSTINHO, La inmortalidad del alma. Lope Cilleruelo. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1988; Idem, Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Coleção Os pensadores); Idem, Sobre a potencialidade da alma (De quantitate animae). Petrópolis (RJ): Vozes, 2005; PLATÃO, Fedro. 275-c a 276-d e Carta VI, 344-c. d.; Idem, Obras Completas. Madrid: Aguillar, 1977, entre outros.  

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