Giambattista Vico em sua obra Scienza Nuova de 1744, ao escrever sobre a gênese das nações deixa
transparecer os conteúdos quer históricos, quer políticos que estão contidos em
sua obra. Seu método constitui-se de uma análise tanto filológica quanto
filosófica, tal método, conforme ele argumenta encontra-se embasado nos
conceitos de ciência elaborados por Aristóteles e Francis Bacon. O primeiro por
que afirmou que os objetos das ciências devem ser as coisas universais e
eternas; o segundo, por seu método filosófico que parte das coisas naturais e
transporta-as para “as coisas humanas civis”, conforme ele propõe na sua obra Cogitata et visa de interpretatione naturae,
sive de inventione rerum et operum de 1609 [1].
O problema na elaboração deste trabalho deveu-se, sobretudo
não à carência de conteúdos relacionados aos temas propostos, mas ao contrário
ao excesso. Tive muita dificuldade em separar ambos os objetos da pesquisa, bem
como os argumentos mais importantes e interessantes com os quais o autor expõe
suas ideias. Vico à medida que descreve as origens das organizações políticas
descreve História, de semelhante modo quando descreve as fábulas mitológicas e
os fatos históricos descreve a Política.
Logo no início, na Ideia da Obra, o autor descreve pelo mito
de Hércules, as figuras dos primeiros heróis desbravadores. Aqueles heróis que
queimaram as florestas e estabeleceram as primeiras comunidades políticas. Por tal
motivo a figura de Hércules é descrita ou denominada como um “caráter dos
heróis políticos”, conforme vemos nesta passagem:
Na faixa do zodíaco que cinge o globo terrestre, mais
do que os outros, comparecem em majestade (...) apenas dois signos do Leão e da
Virgem, para significar que esta Ciência, nos seus princípios, contempla
primeiramente Hércules (...) que se comprova ter sido o carácter dos heróis
políticos que devem ter vindo antes dos heróis das guerras, pegou fogo e
transformou em cultivado [2].

Ideia da Obra. Frontispício da Scienza Nuova
A contagem dos tempos entre os gregos se inicia com o cultivo
dos campos. A figura da “Virgem” coroada de espigas simbolicamente significa
que a história grega começa na “Idade do Ouro” narrada pelos poetas, e tal ouro
em verdade era o trigo, que de acordo com Vico, teria sido “o primeiro ouro do
mundo”. De modo semelhante, a contagem dos tempos entre os povos do Lácio
esteve ligada à contagem das messes, ou seja, das colheitas. Tais povos
denominaram esta primeira idade como sendo a “Idade de Saturno”. O Saturno dos
latinos era figura idêntica a Cronos*, divindade grega associada ao tempo. A
ciência da Cronologia relacionava-se “à doutrina dos tempos” [3].
Vico ao descrever seu método de estudo, que tem por base a
análise filológico-filosófico amparando-se também na proposta de uma “nova arte
crítica”, ele busca a verdade sobre os fundadores das nações e diz que
decorreram cerca de mil anos até que surgisse m os escritores. O propósito de
sua Ciência é fazer uma análise dos costumes, dos fatos, da linguagem e tudo o
mais que esteja relacionado ao fazer humano. Seu estudo possibilita a descoberta
de uma “história ideal eterna”, na qual transcorre a história de todas as
nações[4].
O estudo das fábulas do período heroico possibilita o
conhecimento de uma cronologia da história poética dos deuses. Tais fábulas
revelam tanto a história de seus heróis quanto de seus costumes e que estes
foram comuns a todos os homens no seu estado de barbárie. Eis o motivo de o
autor considerar as obras de Homero, a Ilíada
e a Odisséia como sendo “dois grandes
tesouros” que nos possibilitavam conhecer questões relativas quer aos costumes,
quer ao direito natural dos povos na sua barbárie. Conforme vemos neste trecho:
Essa teogonia natural, ou seja, geração dos deuses,
produzida naturalmente nas mentes dos homens primitivos, dá-nos uma cronologia
refletida da história poética dos deuses. As fábulas heroicas foram histórias
verdadeiras dos heróis e dos seus heroicos costumes, que se verifica terem
florescido em todas as nações no tempo da sua barbárie; pelo que se comprova
serem os dois poemas de Homero dois grandes tesouros para a descoberta do
direito natural das gentes gregas ainda bárbaras [5].
O estilo homérico foi mantido por Heródoto, tido como o pai
da História. Em sua obra é possível perceber o grande uso das fábulas, e tal
uso permaneceu durante certo tempo entre os historiadores que adviriam,
utilizando expressões que meneavam entre estilo poético e o vulgar. Será com
Tucídides que a História ganha certo rigor quanto à veracidade dos fatos
narrados, conforme vemos nesta passagem:
(...) Heródoto, chamado o pai da história grega, e
cujos livros estão repletos, na sua maior parte, de fábulas, e o estilo retém
muitíssimo do homérico; em cuja propriedade se conservaram todos os historiadores
que depois vieram, que usam uma expressão intermédia entre a poética e a
vulgar. Mas Tucídides, o primeiro historiador rigoroso e sério da Grécia, no
princípio dos seus relatos, declara que, até o tempo de seu pai (que era o
tempo de Heródoto, que era velho quando tucídides era criança), os Gregos, de
facto, nada sabiam, não apenas das antiquidades estrangeiras (...), mas das
suas próprias [6];
Representado no Frontispício da Obra a figura do lítuo, ou
seja, o bastão ou cajado, instrumento utilizado pelos primeiros adivinhos. É a
partir da arte divinatória que começam a descobrir ou acreditar nas coisas
divinas. Os hebreus pelo atributo da providência deles acreditavam ser Deus uma
“Mente infinita” e que observa todos os tempos a partir de um ponto da eternidade;
quando Deus atuava, ou seja, dizia o que havia de porvir, Ele o fazia por meio
de anjos, porque eles são mente, ou por meio dos profetas que advertiam o povo.
Os gentios tinham uma arte divinatória de procurar na própria natureza. Ora tal
natureza dizia-se encontrar repleta de deuses. Tais deuses deixariam signos, e
só os adivinhos reconheciam estes signos. Nestes os deuses nos aconselhavam
quais decisões tomar, principalmente quando era de interesse comum[7]. O
lítuo, segundo Vico é um símbolo de que a partir da arte divinatória tem início
a história universal gentílica, que por meio de suas provas “físicas e
filológicas” demonstram que a história universal dos gentios tem início com o
“dilúvio universal”. De acordo com esta passagem:
Sobre o altar, do lado direito, o primeiro a aparecer
é um lítuo, ou seja, a vara com a qual os augures tomavam os augúrios e
observavam os auspícios; o qual pretende dar a entender a adivinhação, a partir
da qual o começaram as primeiras coisas divinas para todos os gentios (...) foi
dado universalmente por todo o gênero humano à natureza de deus o nome de
<>, a partir de uma mesma idéia, à qual os latinos
chamaram <>,
<> (...) Portanto, de uma só vez, com esse dito
lítuo, se assinala o princípio da história universal gentílica que, com provas
físicas e filológicas, se demonstra ter tido o seu começo no dilúvio universal [8].
A figura da urna cinerária no frontispício da obra demonstra
a organização política dos primeiros pais da humanidade. Ela representa,
conforme o autor, a divisão dos campos e a distinção das cidades e dos povos.
Ora os gentios, após um período pós-diluviano vivendo como animais, vão aos
poucos se estabelecendo com algumas mulheres e “abaladas e despertas” essas gentes
criam e acreditam que uma divindade os observa. Temerosos com a violência das
tempestades, que acreditam ser a manifestação de tal divindade, estas gentes
iniciam um refreamento dos instintos e cuidam de tornar-se piedosos. A crença
de uma divindade faculta-lhes o estabelecimento de dois outros princípios de
humanidade: os casamentos e os sepultamentos. Com o casamento surgem as
famílias e com os sepultamentos a posse do território que por longo tempo
haviam ocupado, pois que nestes territórios estavam as tumbas dos seus
antepassados delimitando assim os costumes e os territórios de cada povo
distintamente. Conforme vemos neste trecho:
Essa urna assinala, além disso, a origem, entre os
mesmos gentios, da divisão dos campos, na qual se devem procurar encontrar as
origens da distinção das cidades e dos povos e, por fim, das nações (...) e,
assim dispersas, para procurar pasto e água e, por tudo isto, ao fim de longo
tempo, tendo chegado a um estado de animalidade, em certas ocasiões ordenadas
pela providência divina (que por esta Ciência se meditam e se descobrem),
abaladas e despertas por um terrível pavor de uma divindade do Céu e de Júpiter
por elas próprias inventadas e crida, finalmente, uns tantos detiveram-se e
esconderam-se em certos lugares; onde, estabelecidos com certas mulheres (...)
celebraram os matrimônios e fizeram filhos certos, e assim fundaram as famílias
[9].
Com o estabelecimento dessas famílias junto às sepulturas dos
seus pais confirmaram existir entre eles os fundadores das primeiras
comunidades e entre eles surgiu a divisão dos campos. Esses primeiros pais eram
denominados de “gigantes”. O que de acordo com Vico, tal termo em grego
significa <>, o mesmo também significaria
“descendentes dos sepultados”. Estes primeiros pais consideravam-se “nobres”
porque pensavam com justiça (como sendo justo) o modo como eles haviam sido
gerados, ou seja, gerados humanamente sob o temor de uma divindade [10].
Os primeiros que foram gerados dentro dos casamentos certos,
ou seja, que foram humanamente gerados, foram denominados “geração humana” e
das diversas famílias que desta geração ramificaram-se e desses descendentes
vieram a se formar o que o autor denomina de “as primeiras gentes”. È a partir
destas primeiras gentes têm início o que Vico chama de “doutrina do direito
natural das gentes”. É com razões tanto físicas quanto morais, que vão além das
histórias, que se comprova que estes primeiros pais eram, tanto em força,
quanto em estatura gigantes [11]
no sentido atual do termo.
A história dos povos antigos pode ser desvelada a partir da
história dos povos romanos e mais ainda, dos povos da Grécia. Quanto às
denominações dos lugares e regiões do mundo, todos em sua grande maioria
receberam seus nomes, a partir de lugares e regiões que a princípio estavam na
própria Grécia. Só depois que os gregos partem pelo mundo, eles denominam os
novos lugares de acordo com a semelhança com sua terra de origem. Estas
descobertas são tidas como “os outros princípios da geografia”, que juntamente
com a cronologia são os “olhos da História”. Estas duas ciências, conforme o
autor são necessários para a leitura da “história ideal eterna”. Conforme esta
passagem:
E, porque se comprova terem sido estes altares os
primeiros abrigos do mundo (que Tito Lívio geralmente define <>,
como nos é narrado ter Rómulo fundado Roma dentro do abrigo aberto no bosque),
(...) A esta descoberta menor junta-se esta maior: que, entre os Gregos (...), a
primeira Trácia ou Cítia (ou seja, o primeiro Setentrião), a primeira Ásia e a
primeira Índia (ou seja, o primeiro oriente), a primeira Mauritânia ou Líbia (
ou seja, o primeiro Meio-Dia) e a primeira Europa ou primeira Hespéria (ou
seja, o primeiro Ocidente) e, com estas, o primeiro Oceano, todas nasceram
dentro dessa Grécia; e que depois, os gregos, que partiram pelo mundo, pela
semelhança dos lugares deram estes referidos nomes às quatro partes do mundo e
ao oceano que o cinge [12];
Segundo Vico, os primeiros “ímpios-vagabundos-débeis”
procuravam refúgio nestas primeiras cidades, para lá acorriam fugindo da
perseguição dos gigantes mais furiosos e selvagens. Os gigantes já
estabelecidos delimitavam seus territórios e acolhiam os mais fracos e
subjugava ou matava aqueles ditos violentos e cruéis. Os acolhidos eram
encarregados de produzir às suas expensas o próprio sustento, bem como o de
seus salvadores. Estes acolhidos tornavam-se escravos que após algum tempo
foram também capturados nas guerras. Estas a princípio originaram-se pela
“defesa própria”, pois conforme o autor, esta é a legítima virtude da fortaleza
[13].
Esta análise proporciona a descoberta de um desenho da
“planta eterna das repúblicas”. Nesta planta pode se perceber que os Estados
mesmo que conquistados por meio da força e da fraude precisam se estabelecer
para que durem. Ao contrário, aqueles Estados conquistados por meio de ações
virtuosas tendem após certo tempo a se degenerarem também pela força e pela
fraude. Esta planta das repúblicas encontra-se embasada em dois “princípios
eternos” do mundo das nações, ou seja, a mente e o corpo dos indivíduos, que
pertencem a este mundo das nações. Aqui é impossível não notar a influência de
Platão. Assim como se compõe o homem devem compor-se as nações, ou seja, que
aqueles que usam a mente, que são os nobres comandem, e aqueles que usam o
corpo, os plebeus e compõem a parte vil devem obedecer. Conforme concluímos com esta
passagem:
E em todas estas origens se descobre desenhada a
planta eterna das repúblicas, sobre a qual os Estados se bem que conquistados
com violência e com fraude, se devem estabelecer para durarem; como pelo
contrário, os conquistados com estas origens virtuosas, depois se arruínam com
a fraude e com a força (...) Pelo que – sendo os homens compostos por estas
duas partes, das quais uma é nobre e como tal, deveria comandar, e a outra vil,
a qual deveria servir [14].
[1] VICO,
Giambattista. Ciência Nova, p.119.
[2] Ibidem,
pp. 4-5.
[3] Cf.
VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp.
5-6.
[4] Ibidem,
pp. 8-9.
[5] Ibidem,
p. 10.
[6] Cf.
VICO, Giambattista. Ciência Nova, p.
4.
[7] Ibidem,
p. 9.
[8] Ibidem,
pp. 11-12.
[9] Cf.
VICO, Giambattista. Ciência Nova, p.
14.
[10] Ibidem,
pp. 14-15.
[11] Ibidem,
p. 15.
[12] Cf.
VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp.
19-20.
[13] Ibidem,
p. 20.
[14] Cf.
VICO, Giambattista. Ciência Nova, p.
21.
Imagem: https://felipepimenta.com/2013/12/12/resenha-ciencia-nova-de-giambattista-vico/em 29/04/2018.
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