domingo, 29 de abril de 2018

Um estudo dos conteúdos histórico-políticos da Scienza Nuova de 1744 de Giambattista Vico (I parte)



Giambattista Vico em sua obra Scienza Nuova de 1744, ao escrever sobre a gênese das nações deixa transparecer os conteúdos quer históricos, quer políticos que estão contidos em sua obra. Seu método constitui-se de uma análise tanto filológica quanto filosófica, tal método, conforme ele argumenta encontra-se embasado nos conceitos de ciência elaborados por Aristóteles e Francis Bacon. O primeiro por que afirmou que os objetos das ciências devem ser as coisas universais e eternas; o segundo, por seu método filosófico que parte das coisas naturais e transporta-as para “as coisas humanas civis”, conforme ele propõe na sua obra Cogitata et visa de interpretatione naturae, sive de inventione rerum et operum de 1609 [1].
O problema na elaboração deste trabalho deveu-se, sobretudo não à carência de conteúdos relacionados aos temas propostos, mas ao contrário ao excesso. Tive muita dificuldade em separar ambos os objetos da pesquisa, bem como os argumentos mais importantes e interessantes com os quais o autor expõe suas ideias. Vico à medida que descreve as origens das organizações políticas descreve História, de semelhante modo quando descreve as fábulas mitológicas e os fatos históricos descreve a Política.
Logo no início, na Ideia da Obra, o autor descreve pelo mito de Hércules, as figuras dos primeiros heróis desbravadores. Aqueles heróis que queimaram as florestas e estabeleceram as primeiras comunidades políticas. Por tal motivo a figura de Hércules é descrita ou denominada como um “caráter dos heróis políticos”, conforme vemos nesta passagem:

Na faixa do zodíaco que cinge o globo terrestre, mais do que os outros, comparecem em majestade (...) apenas dois signos do Leão e da Virgem, para significar que esta Ciência, nos seus princípios, contempla primeiramente Hércules (...) que se comprova ter sido o carácter dos heróis políticos que devem ter vindo antes dos heróis das guerras, pegou fogo e transformou em cultivado [2].

 New Science
              Ideia da Obra. Frontispício da Scienza Nuova


A contagem dos tempos entre os gregos se inicia com o cultivo dos campos. A figura da “Virgem” coroada de espigas simbolicamente significa que a história grega começa na “Idade do Ouro” narrada pelos poetas, e tal ouro em verdade era o trigo, que de acordo com Vico, teria sido “o primeiro ouro do mundo”. De modo semelhante, a contagem dos tempos entre os povos do Lácio esteve ligada à contagem das messes, ou seja, das colheitas. Tais povos denominaram esta primeira idade como sendo a “Idade de Saturno”. O Saturno dos latinos era figura idêntica a Cronos*, divindade grega associada ao tempo. A ciência da Cronologia relacionava-se “à doutrina dos tempos” [3].
Vico ao descrever seu método de estudo, que tem por base a análise filológico-filosófico amparando-se também na proposta de uma “nova arte crítica”, ele busca a verdade sobre os fundadores das nações e diz que decorreram cerca de mil anos até que surgisse m os escritores. O propósito de sua Ciência é fazer uma análise dos costumes, dos fatos, da linguagem e tudo o mais que esteja relacionado ao fazer humano. Seu estudo possibilita a descoberta de uma “história ideal eterna”, na qual transcorre a história de todas as nações[4].
O estudo das fábulas do período heroico possibilita o conhecimento de uma cronologia da história poética dos deuses. Tais fábulas revelam tanto a história de seus heróis quanto de seus costumes e que estes foram comuns a todos os homens no seu estado de barbárie. Eis o motivo de o autor considerar as obras de Homero, a Ilíada e a Odisséia como sendo “dois grandes tesouros” que nos possibilitavam conhecer questões relativas quer aos costumes, quer ao direito natural dos povos na sua barbárie. Conforme vemos neste trecho:

Essa teogonia natural, ou seja, geração dos deuses, produzida naturalmente nas mentes dos homens primitivos, dá-nos uma cronologia refletida da história poética dos deuses. As fábulas heroicas foram histórias verdadeiras dos heróis e dos seus heroicos costumes, que se verifica terem florescido em todas as nações no tempo da sua barbárie; pelo que se comprova serem os dois poemas de Homero dois grandes tesouros para a descoberta do direito natural das gentes gregas ainda bárbaras [5].

O estilo homérico foi mantido por Heródoto, tido como o pai da História. Em sua obra é possível perceber o grande uso das fábulas, e tal uso permaneceu durante certo tempo entre os historiadores que adviriam, utilizando expressões que meneavam entre estilo poético e o vulgar. Será com Tucídides que a História ganha certo rigor quanto à veracidade dos fatos narrados, conforme vemos nesta passagem:

(...) Heródoto, chamado o pai da história grega, e cujos livros estão repletos, na sua maior parte, de fábulas, e o estilo retém muitíssimo do homérico; em cuja propriedade se conservaram todos os historiadores que depois vieram, que usam uma expressão intermédia entre a poética e a vulgar. Mas Tucídides, o primeiro historiador rigoroso e sério da Grécia, no princípio dos seus relatos, declara que, até o tempo de seu pai (que era o tempo de Heródoto, que era velho quando tucídides era criança), os Gregos, de facto, nada sabiam, não apenas das antiquidades estrangeiras (...), mas das suas próprias [6];

Representado no Frontispício da Obra a figura do lítuo, ou seja, o bastão ou cajado, instrumento utilizado pelos primeiros adivinhos. É a partir da arte divinatória que começam a descobrir ou acreditar nas coisas divinas. Os hebreus pelo atributo da providência deles acreditavam ser Deus uma “Mente infinita” e que observa todos os tempos a partir de um ponto da eternidade; quando Deus atuava, ou seja, dizia o que havia de porvir, Ele o fazia por meio de anjos, porque eles são mente, ou por meio dos profetas que advertiam o povo. Os gentios tinham uma arte divinatória de procurar na própria natureza. Ora tal natureza dizia-se encontrar repleta de deuses. Tais deuses deixariam signos, e só os adivinhos reconheciam estes signos. Nestes os deuses nos aconselhavam quais decisões tomar, principalmente quando era de interesse comum[7]. O lítuo, segundo Vico é um símbolo de que a partir da arte divinatória tem início a história universal gentílica, que por meio de suas provas “físicas e filológicas” demonstram que a história universal dos gentios tem início com o “dilúvio universal”. De acordo com esta passagem:


Sobre o altar, do lado direito, o primeiro a aparecer é um lítuo, ou seja, a vara com a qual os augures tomavam os augúrios e observavam os auspícios; o qual pretende dar a entender a adivinhação, a partir da qual o começaram as primeiras coisas divinas para todos os gentios (...) foi dado universalmente por todo o gênero humano à natureza de deus o nome de <>, a partir de uma mesma idéia, à qual os latinos chamaram <>, <> (...) Portanto, de uma só vez, com esse dito lítuo, se assinala o princípio da história universal gentílica que, com provas físicas e filológicas, se demonstra ter tido o seu começo no dilúvio universal [8].


A figura da urna cinerária no frontispício da obra demonstra a organização política dos primeiros pais da humanidade. Ela representa, conforme o autor, a divisão dos campos e a distinção das cidades e dos povos. Ora os gentios, após um período pós-diluviano vivendo como animais, vão aos poucos se estabelecendo com algumas mulheres e “abaladas e despertas” essas gentes criam e acreditam que uma divindade os observa. Temerosos com a violência das tempestades, que acreditam ser a manifestação de tal divindade, estas gentes iniciam um refreamento dos instintos e cuidam de tornar-se piedosos. A crença de uma divindade faculta-lhes o estabelecimento de dois outros princípios de humanidade: os casamentos e os sepultamentos. Com o casamento surgem as famílias e com os sepultamentos a posse do território que por longo tempo haviam ocupado, pois que nestes territórios estavam as tumbas dos seus antepassados delimitando assim os costumes e os territórios de cada povo distintamente. Conforme vemos neste trecho:


Essa urna assinala, além disso, a origem, entre os mesmos gentios, da divisão dos campos, na qual se devem procurar encontrar as origens da distinção das cidades e dos povos e, por fim, das nações (...) e, assim dispersas, para procurar pasto e água e, por tudo isto, ao fim de longo tempo, tendo chegado a um estado de animalidade, em certas ocasiões ordenadas pela providência divina (que por esta Ciência se meditam e se descobrem), abaladas e despertas por um terrível pavor de uma divindade do Céu e de Júpiter por elas próprias inventadas e crida, finalmente, uns tantos detiveram-se e esconderam-se em certos lugares; onde, estabelecidos com certas mulheres (...) celebraram os matrimônios e fizeram filhos certos, e assim fundaram as famílias [9].


Com o estabelecimento dessas famílias junto às sepulturas dos seus pais confirmaram existir entre eles os fundadores das primeiras comunidades e entre eles surgiu a divisão dos campos. Esses primeiros pais eram denominados de “gigantes”. O que de acordo com Vico, tal termo em grego significa <>, o mesmo também significaria “descendentes dos sepultados”. Estes primeiros pais consideravam-se “nobres” porque pensavam com justiça (como sendo justo) o modo como eles haviam sido gerados, ou seja, gerados humanamente sob o temor de uma divindade [10].
Os primeiros que foram gerados dentro dos casamentos certos, ou seja, que foram humanamente gerados, foram denominados “geração humana” e das diversas famílias que desta geração ramificaram-se e desses descendentes vieram a se formar o que o autor denomina de “as primeiras gentes”. È a partir destas primeiras gentes têm início o que Vico chama de “doutrina do direito natural das gentes”. É com razões tanto físicas quanto morais, que vão além das histórias, que se comprova que estes primeiros pais eram, tanto em força, quanto em estatura gigantes [11] no sentido atual do termo.
A história dos povos antigos pode ser desvelada a partir da história dos povos romanos e mais ainda, dos povos da Grécia. Quanto às denominações dos lugares e regiões do mundo, todos em sua grande maioria receberam seus nomes, a partir de lugares e regiões que a princípio estavam na própria Grécia. Só depois que os gregos partem pelo mundo, eles denominam os novos lugares de acordo com a semelhança com sua terra de origem. Estas descobertas são tidas como “os outros princípios da geografia”, que juntamente com a cronologia são os “olhos da História”. Estas duas ciências, conforme o autor são necessários para a leitura da “história ideal eterna”. Conforme esta passagem:


E, porque se comprova terem sido estes altares os primeiros abrigos do mundo (que Tito Lívio geralmente define <>, como nos é narrado ter Rómulo fundado Roma dentro do abrigo aberto no bosque), (...) A esta descoberta menor junta-se esta maior: que, entre os Gregos (...), a primeira Trácia ou Cítia (ou seja, o primeiro Setentrião), a primeira Ásia e a primeira Índia (ou seja, o primeiro oriente), a primeira Mauritânia ou Líbia ( ou seja, o primeiro Meio-Dia) e a primeira Europa ou primeira Hespéria (ou seja, o primeiro Ocidente) e, com estas, o primeiro Oceano, todas nasceram dentro dessa Grécia; e que depois, os gregos, que partiram pelo mundo, pela semelhança dos lugares deram estes referidos nomes às quatro partes do mundo e ao oceano que o cinge [12];



Segundo Vico, os primeiros “ímpios-vagabundos-débeis” procuravam refúgio nestas primeiras cidades, para lá acorriam fugindo da perseguição dos gigantes mais furiosos e selvagens. Os gigantes já estabelecidos delimitavam seus territórios e acolhiam os mais fracos e subjugava ou matava aqueles ditos violentos e cruéis. Os acolhidos eram encarregados de produzir às suas expensas o próprio sustento, bem como o de seus salvadores. Estes acolhidos tornavam-se escravos que após algum tempo foram também capturados nas guerras. Estas a princípio originaram-se pela “defesa própria”, pois conforme o autor, esta é a legítima virtude da fortaleza [13].
Esta análise proporciona a descoberta de um desenho da “planta eterna das repúblicas”. Nesta planta pode se perceber que os Estados mesmo que conquistados por meio da força e da fraude precisam se estabelecer para que durem. Ao contrário, aqueles Estados conquistados por meio de ações virtuosas tendem após certo tempo a se degenerarem também pela força e pela fraude. Esta planta das repúblicas encontra-se embasada em dois “princípios eternos” do mundo das nações, ou seja, a mente e o corpo dos indivíduos, que pertencem a este mundo das nações. Aqui é impossível não notar a influência de Platão. Assim como se compõe o homem devem compor-se as nações, ou seja, que aqueles que usam a mente, que são os nobres comandem, e aqueles que usam o corpo, os plebeus e compõem a parte vil devem obedecer. Conforme concluímos com esta passagem:


E em todas estas origens se descobre desenhada a planta eterna das repúblicas, sobre a qual os Estados se bem que conquistados com violência e com fraude, se devem estabelecer para durarem; como pelo contrário, os conquistados com estas origens virtuosas, depois se arruínam com a fraude e com a força (...) Pelo que – sendo os homens compostos por estas duas partes, das quais uma é nobre e como tal, deveria comandar, e a outra vil, a qual deveria servir [14].


[1] VICO, Giambattista. Ciência Nova, p.119.
[2] Ibidem, pp. 4-5.
[3] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 5-6.
[4] Ibidem, pp. 8-9.
[5] Ibidem, p. 10.
[6] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 4.
[7] Ibidem, p. 9.
[8] Ibidem, pp. 11-12.
[9] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 14.
[10] Ibidem, pp. 14-15.
[11] Ibidem, p. 15.
[12] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, pp. 19-20.
[13] Ibidem, p. 20.
[14] Cf. VICO, Giambattista. Ciência Nova, p. 21.

Imagem: https://felipepimenta.com/2013/12/12/resenha-ciencia-nova-de-giambattista-vico/em 29/04/2018.

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